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AS ALHEIRAS E OS JUDEUS. VERDADE OU MITO?

 

Sendo este um texto que de unânime tem muito pouco e, não sendo eu o dono da verdade absoluta, a par de todas as referências que poderão consultar na bibliografia, solicitei o apoio do chefe Nuno Diniz na revisão deste artigo. Além de ter sido o moderador da minha primeira apresentação pública (2009) no saudoso Peixe em Lisboa, sempre o admirei como profissional e cronista. Foié, e continua a ser um relevante influenciador de várias gerações de cozinheiros (não confundir com o termo barato de influencer) e um profundo conhecedor da gastronomia portuguesa.


Produção de enchidos em Vinhais


 

A etimologia da palavra alheira

(Alho + sufixo eira)

Suspeita-se que deriva da designação que encontramos também nas ervas alheiras: Alliaria petiolata, Allium victorialis, Allium vinale ou Allium sphoerocephalon. Já desde o antigo Egipto que eram atribuídos valores bactericidas, vitamínicos e calóricos a estas plantas. Em Portugal, estas ervas, foram introduzidas pelos Romanos.

No séc. XIII aparece pela primeira vez registada uma denominação muito próxima à alheira na parochia de Santa Marina de Aleyra, atual freguesia de Barcelos. No ano de 1527 era referida como alheyra e 200 anos mais tarde surge a palavra que hoje todos conhecemos como alheira. Terá derivado do termo latino alliaria, que significa terra de alhos.

As primeiras comunidades de Judeus em Bragança

Ao contrário do que se pensa, os judeus não aparecem em Bragança aquando da inquisição.

Em boa verdade, os sefarditas já eram numerosos na península ibérica, e sempre tiveram um papel importantíssimo na sociedade de então, nas mais diversas áreas. Há registos da existência de várias comunidades já no séc. XIV em Chaves, Monforte de Rio Livre, Bragança e Mogadouro.

Após o séc. XV estas comunidades espalham-se por mais territórios, como por exemplo: Miranda do Douro, Vinhais, Azinhoso, Bemposta, Vila Flor, etc.

A expulsão

Não obstante todas as perseguições de que foram alvo durante séculos, os judeus, encontraram na Península Ibérica um lugar seguro do ponto de vista social e religioso.

 Após o séc. XV torna-se evidente a superioridade destas comunidades, que já emprestavam dinheiro – curiosamente – à família real e também aos Reis e, estes, contrariamente às pressões do papa, promoviam a tolerância entre as várias religiões. Os judeus organizavam-se em comunas sob autoridade do rabi ou arrabi-mor, normalmente viviam em bairros separados da comunidade católica, as chamadas judiarias.

Em Espanha, após o decreto de Alhambra de 1492, os judeus ou se convertiam ao cristianismo ou eram expulsos do país. Depois desta medida, no país vizinho, entraram em Portugal cerca de 50.000 Judeus, com autorização de permanência de apenas 8 meses, e após esse período, teriam de comprar uma licença (que só estava ao alcance de poucas famílias) ou seriam expulsos.

A meia ordem portuguesa

Em 1496, o Rei D. Manuel I dá ordem de expulsão de todos os judeus do território português, mas apercebendo-se do dano que faria à economia pela debandada dos cérebros mais geniais no território, subitamente recua e impõe que todas as crianças judias até aos 14 anos seriam proibidas de abandonar o país e estabelece que todas teriam de ser educadas segundo as regras do cristianismo.

Quem se convertesse também poderia continuar a viver em território nacional. Assim se formaram o que hoje conhecemos como cristãos-novos, que se dedicavam essencialmente a atividades de comércio.


As alheiras não são como os políticos

-Alheira de Vinhais

É produzida nos concelhos de Carrazeda de Ansiães, Macedo de Cavaleiros, Miranda do Douro, Freixo de Espada à Cinta, Vinhais, Vimioso, Alfândega da Fé, Torre de Moncorvo, Mogadouro, Vila Flor, Bragança. Leva carne de porco bísaro, carne das aves (servem apenas para dar sabor ao caldo) pão regional de trigo e azeite de Trás-os-Montes. São condimentadas com colorau, sal e alho. O tempo de fumagem é de oito dias, e a lenha utilizada é essencialmente de castanheiro.

-Alheira de Barroso-Montalegre

Leva carne de porco bísaro (pelo menos 50%, podendo a restante carne ser de outras raças suínas) também pequenas quantidades de carne de aves e de caça. Contém também cebola, alho, condimentos picantes e obviamente o pão. É a que conta com menor tempo de fumagem: apenas três dias (máximo quatro). O fumo é obtido do carvalho, choupo, turfa e salgueiro.

-Alheira de Mirandela

Contém carne de porco bísaro (pelo menos 50%, podendo a restante carne ser de outras raças suínas), carnes de caça e carne de galinha. Conta com menos carne de porco do que as suas concorrentes, compensando com maior fatia de carne de aves. É produzida também com pão regional de trigo. A fumagem é obtida do carvalho e oliveira. A tripa é de vaca.

Afinal qual é a origem da alheira?

Parece não restar qualquer dúvida que foram criadas pelos cristãos-novos para Manuel Mendes que a descreve como a chouricinha da resistência. Maria de Lourdes Modesto afirma: “não é a alheira conhecida pelo chouriço judeu?”

Mouette Barboff aceita que tenha sido de facto inventada os cristãos-novos tão pouco convictos da sua conversão, manifestada apenas, para salvar a pele e os haveres do exílio e das fogueiras da inquisição”

José Quitério declara igualmente que: “as alheiras foram engenhosa invenção dos cristãos-novos judaizantes empurrados pelas perseguições inquisitoriais para as terras de Bragança. O Santo Oficio não dava tréguas: quem não metesse o dente em porco queria dizer que judaizava. Com a invenção deste enchido que até se pendurava no fumeiro, bem podia a inquisição espreitar pelo buraco da fechadura que era enganado como um bufo e assim estava salvo o preceito judaico e salva a pele”.

O que não deixa de ser irónico é o facto de hoje em dia, as alheiras, serem constituídas na sua maioria por carne de porco. 

Francisco Manuel Alves explica que embora a história se possa contradizer, um facto é de realçar - nunca contiveram sangue! Quanto à carne de porco a restrição não era absoluta, mas morcela, por exemplo, era de ingestão totalmente impossível, precisamente por conter sangue do animal – em conformidade com a lei judaica. É aceitável que nem sempre essas regras tenham sido respeitadas e/ou tenham sido alvo de uma certa flexibilidade. Como dizia o nosso poeta e cantor José Afonso: “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.

Embora este seja o pensamento geral, existe também quem defenda o contrário, como Alfredo Saramago que entende que os rituais judaicos de matança de animais impedem por completo a utilização das tripas, por isso considera que por esse motivo era completamente impossível o consumo desta pelos judeus. O que não deixa ser curioso, já que logo de seguida apresenta, ele próprio, argumentos contraditórios, citando J. Albino Lopes “só às sextas-feiras e sábados deixavam de comer carne de porco” e acrescenta: o consumo de carne de porco tem de ser entendido como uma prática pública de enganar os vigilantes fundamentalistas católicos que saibam da ancestral repugnância dos judeus pela carne de porco, mais uma razão para a estória das origens da alheira poder considerar-se uma lenda”.  

Virgílio Gomes, além de opositor às modernas alheiras de bacalhau e às alheiras vegetarianas (eu também, diga-se) esclarece-nos no seu Transmontanices que de facto a sua origem é tão rigorosa como o paradeiro de D. Sebastião: Mas durante quanto tempo a alheira foi confecionada sem carne de porco? a partir de quando iniciaram a introdução de carne de porco? Não dispomos de registos.”

Maria Antonieta Garcia, em 1993, constatou um facto curioso no seu livro Os judeus de Belmonte que estes consideram o consumo da carne de porco um hábito fortemente enraizado na beira e alguns acabam por inclui-la na alimentação. Outros sempre a recusaram. As alheiras também podiam levar carne de perú, uma ave que os autores dos livros sagrados não conheciam, diferente do galo e do pavão, trazida do México para a Europa depois de 1519, uma novidade que está inclusive representada na Sala dos Capelos (1653) da Universidade de Coimbra e admitida igualmente na Arte da cozinha de 1680 de Domingos Rodrigues.”

Para Nuno Diniz a história é só uma estória, pouco sólida, pois não acredita na ingenuidade da inquisição, assim como o facto “de não existir ninguém a produzir alheira tradicional (em Trás-os-Montes) que não coloque carne e “espinha” de porco”.

Neste artigo, além de referir os principais tipos de alheira existentes, teve como objectivo demonstrar vários pontos de vista quanto à sua origem. Não tem um fim, parece-me, que seja claro.

A única verdade que tenho como absoluta é só uma: Uma boa alheira cozinhada sobre as brasas com uma boa batata cozida e grelos é suficiente para chegarmos à lua antes do Elon Musk!


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História da alimentação - O porco

Os molhos através dos séculos

 

 

Bibliografia:

Reminiscências Cripto-judaicas nas alheiras transmontanas, BARBOFF, Mouette, Ficta Editora,2019

Entre ventos e fumos, DINIZ, Nuno, Bertrand, 2019

Transmontanices, GOMES Virgílio Nogueiro, Edições do gosto, 2010

Os judeus de Belmonte, GARCIA, Maria Antonieta, Universidade Nova de Lisboa, 1993

Alheiras, e alheira de Mirandela, MONTEIRO, António Manuel, Âncora Editora,2020

 

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