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OS MOLHOS ATRAVÉS DOS SÉCULOS





O autor gostaria de agradecer a generosidade e disponibilidade do Exmo. Senhor Virgílio Nogueiro Gomes que, de forma gentilíssima, esclareceu aquele sobre alguns pontos que, na preparação deste texto, lhe suscitaram dúvidas. 


Molho
O que é?
Um molho pode ser definido como “tempero líquido para alimentos[1]”.  

Como começaram os molhos a ser utilizados na Europa?

Período Romano
É difícil reconstituir a história dos molhos até ao seu início uma vez que dependemos, para isso, de documentos escritos. Ainda assim, sabemos, através dos escritos de Marcus Gavius Apicius, cozinheiro romano, que já naquele tempo (séc. I DC) era frequente o uso de molhos nas confecções, geralmente elaborados com o recurso a alho francês, cebolas, especiarias diversas (provenientes dos recantos mais longínquos do império), vinho, mel e azeite. Era também comum a utilização de garum, um molho fermentado de peixe. Muitas receitas exigiam também que o molho fosse, no final, “ligado”, ora usando amidos (de origem não especificada), ora usando ovos inteiros.

Idade Média

A queda do Império Romano e o advento da Idade Média influenciaram enormemente a história dos molhos na Europa. Estes passaram a incluir grandes quantidades de especiarias (trazidas pelos cavaleiros que, nos sécs. XII e XIII, que regressavam das cruzadas do Médio Oriente), bem como ingredientes mais exóticos como pistácios, açúcar, amêndoas, romãs e espinafres. 

Os caldos modernos ainda não haviam sido inventados mas já havia a prática de reservar os líquidos da cozedura de peças de carne ou peixe e ligá-los com pão, amêndoa ralada ou gema de ovo para criar um molho.
O séc. XVII assiste a uma mudança na forma de cozinhar – enquanto até então os cozinheiros privilegiavam o uso de ingredientes e especiarias exóticos, nesta altura passaram a procurar e a preservar o sabor original dos ingredientes, manipulando-os e adulterando-os menos. 

Certos ingredientes que hoje conhecemos e valorizamos, como as chalotas, cenouras, aipo, cogumelos selvagens e trufas, fizeram a sua entrada definitiva na Europa por esta altura, período em que também se criou o roux bem como o primeiro restaurante – líquido resultante de peças de carne cozinhadas, sem qualquer água, dentro de uma garrafa bem selada até que libertassem os seus sucos. O referido liquido era então servido como tónico medicinal capaz de “restaurar” a força e a vitalidade.


História recente
No séc. XIX basta mencionar o trabalho pioneiro de Antonin Carême, que sistematizou os quatro molhos base fundamentais da cozinha francesa – molho espagnole,veloutéallemande, e béchamel. Estes molhos serviriam então de base a uma panóplia de molhos também descritos por Carême. Este trabalho não só homogeneizou o trabalho de inúmeros cozinheiros franceses como lhes permitiu, trabalhando sobre a base de Carême, desenvolver todo um conjunto de molhos particulares e próprios de cada cozinheiro e restaurante[2].
O séc. XX traz consigo um desenvolvimento natural do trabalho de Carême pela mão de Auguste Escoffier na sua obra fundamental Le Guide Culinaire. Escoffier continuou o trabalho de sistematização do repertório francês iniciado por Carême, incluíndo os molhos de tomate, maionese e holandês como molhos de base. 

Os anos 60 do séc. XX vêem nascer a nova nouvelle cuisine (este termo não era inédito - já havia sido cunhado no séc. XVIII por Menon, pseudónimo de um autor francês de livros de cozinha cuja verdadeira identidade ainda hoje é desconhecida). Este movimento procurou destacar a cozinha francesa das regras que até então a restringiam, tornando-a mais leve, simples e saudável. 


No campo dos molhos isto foi atingido através da redução da quantidade de farinha utilizada e, até, a sua substituição por manteiga, natas ou gemas de ovos. 


Michel Guérard, um dos pioneiros deste movimento (a par de, entre outros, Paul Bocuse, Alain Chapel, Jean e Pierre Troisgros, Roger Vergé e Raymond Oliver), no seu livro La Grande Cuisine Minceur, propõe mesmo a utilização de caldos aromáticos em vez de molhos, excluindo assim o uso de elementos de ligação.


Actualmente vivemos na época da tecnologia. O trabalho de Hervé This e posteriormente de Ferran Adriá abriu as portas ao uso de inúmeros ingredientes emulsionantes e estabilizantes que permitem aos cozinheiros maior segurança, consistência e criatividade quanto ao sabor e textura dos molhos. Este movimento, no entanto, desaguou numa corrente subsequente que procura, de novo, reduzir a cozinha aos seus elementos mais simples e mais próximos do sabor essencial de cada ingrediente.


E em Portugal?
A informação escrita a que possamos recorrer para reconstituir o percurso dos molhos na gastronomia Portuguesa é extremamente escassa. Temos, no entanto, que os caldos Portugueses primordiais assumiam funções eminentemente medicinais, só sendo estes adaptados a molhos refinados por influência da gastronomia Francesa.
O livro Arte da Cozinha, de Domingos Rodrigues, publicado em 1680, refere apenas em dois molhos - um molho de pato e um outro para coelho – e num “caldo bom para nutrir, e muito fresco”.

Lucas Rigaud, por seu turno, no seu Cozinheiro Moderno, ou Nova Arte de Cozinha, publicado 100 anos depois, em 1780, oferece nada menos do que 35 receitas de molhos e todo um capítulo dedicado a “caldos e substâncias”. A nota introdutória deste capitulo é esclarecedora sobre a função que lhes seria atribuida: “Dos caldos, e substâncias, tanto de carne, como de peixe, de hervas, raízes, e legumes; caldo em pastilhas, ou de concerva, e outros para várias enfermidades, segundo as receitas dos melhores Médicos”. A este volume de oferta não deve ser indiferente o facto de Rigaud, de provável origem francesa, ter sido cozinheiro por três décadas em várias cortes Europeias[3], experiência que seguramente procurou trazer para Portugal.


Decorridos quase outros 100 anos, em 1870, vai à estampa o livro O Cozinheiro dos Cozinheiros, de Paul Plantier, relojoeiro e gourmand francês radicado em Portugal, onde podemos encontrar mais de 50 receitas de molhos e mais de 20 de caldos. O seu tom e estilo permanecem, no entanto, fiéis à terra que o viu nascer, senão vejamos: “Nas grandes cozinhas preparam-se sob o nome de molhos principais, differentes substancias que se põem de reserva e se conservam frescas para as juntar, sendo necessário, aos outros molhos, a fim de os aperfeiçoar e fortificar. Essas espécies de substancias, que differem pouco das já descriptas, têem os nomes de avelludado ou molho avelludado (velouté, sauce au velouté), béchamel ou molho á béchamel,molho hespanhol e molho á allemã”.


Chegados ao século XX temos por referências António Maria de Oliveira Bello e João Ribeiro, incontornável chefe de cozinha do Hotel Aviz durante 25 anos. O primeiro, apesar do seu inegável amor pelos produtos e tradições Portugueses, refere no seu livro Culinária, editado em 1928, a cozinha francesa como “a mais perfeita, a mais artística e higiénica[4]Ainda assim inclui naquele livro várias receitas de molhos, incluindo duas receitas de "Molho de Tomate à Portuguesa"Quanto ao segundo sabemos também ter declarado, certa vez: “Um verdadeiro cozinheiro prepara com o mesmo gosto todo e qualquer prato. Mas, como é natural, todos temos as nossas preferências e as minhas vão para a cozinha francesa[5]”.
A influência francesa nestas matérias é decisiva.


Muito, ou quase tudo, sobre a história dos molhos terá ficado por explorar neste pequeno texto. Faltam inúmeros capítulos (a América do Sul e a Ásia despertam-me imediatamente a curiosidade) mas a minha intenção foi apenas a de fazer um brevíssimo apanhado da história Europeia sobre este tema. Apesar de tudo, os meus esforços produziram resultados que, infelizmente, ficaram aquém do que desejava quanto à escola Portuguesa nesta área. Ficaria muito feliz se, em resposta a este texto, fosse inundado por exemplos e receitas de molhos que desconheço e que sejam exclusivamente Portugueses, em técnica e substância. 
Estou certo de que eles existem e que todos beneficiaríamos em os conhecer melhor.

Este artigo foi escrito por: 
Ângelo Paupério
Cozinheiro
angelopauperio@yahoo.com








[1] Virgílio Nogueiro Gomes, Dicionário Prático da Cozinha Portuguesa, Marcador/Presença, 2015
[2] Ian Kelly, Cooking for Kings – The Life of Antonin Carême, Walker Publishing Company Inc., 2004
[3] João Pedro Gomes, Cozinhar “á Portugueza” com Lucas Rigaud: identidade alimentar portuguesa no
Cozinheiro Moderno, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016
[4] Itinerários, a investigação nos 25 anos do ICS, Instituto de Ciências Sociais de Lisboa, 2008
[5] José Labaredas, José Quitério, O Livro de Mestre João Ribeiro, Assírio e Alvim, 1996
Ver também: Harold Mcgee, On Food and Cooking, Scribner, 2004; Virgílio Nogueiro Gomes, Tratado do Petisco e das Grandes Maravilhas da Cozinha Nacional, Marcador, 2013




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