O porco
O porco é um animal cuja evolução conta
já milhões de anos. Todos os porcos descendem de apenas três espécies de
javalis: o sus scrofa scrofa,
originário da Europa e do norte da África; o sus scrofa vittatus, originário da Indonésia, Japão e China; e o sus scrofa cristatus, originário da
Índia.
O javali tem sido louvado ao longo de milhares
de anos pela sua inteligência e bravura: o quarto trabalho de Hércules foi o de
capturar o javali Erimenciano; Ulisses, personagem central das mitologias grega
e romana, passava o seu tempo a caçar porcos selvagens; a ferocidade destes
animais é descrita em antigas sagas celtas e escandinavas.
As provas mais antigas de que dispomos apontam
para a domesticação do porco (sus scrofa
domesticus) por volta do ano 9000 A.C., nos territórios da actual Grécia e
Turquia. O porco só terá chegado à Europa central no ano 4000 A.C.
Naturalmente, o animal sofreu várias alterações físicas com a domesticação: o
tamanho do corpo e do cérebro diminuíram, os dentes tornaram-se mais pequenos,
o focinho encolheu, as orelhas tornaram-se caídas (em muitas raças) e, ainda, a
pelagem mudou de densidade e de cor.
Os gregos eram grandes apreciadores de carne de porco e dos
seus enchidos. Aristófanes
faz referência a morcelas na peça “Os
cavalheiros” dizendo:”Porquê, bom
homem, não me deixas limpar as tripas e vender as morcelas…”. Os romanos
prestavam-lhe igual devoção, deixando-nos Marco Gávio Apício (25 A.C. – 37 D.C.)
46 receitas com porco no seu De Re
Coquinaria (algumas estranhíssimas como salsichas com vulva de porca,
almôndegas de vulva de porca, tetas de porca, etc.).
São
incontáveis os exemplos de veneração e elevação do porco a entidade com poderes
transcendentes. Estátuas e esculturas do porco abundam por todo o mundo,
representando a boa sorte, a fecundidade e a abundância.
O
consumo do porco está vedado, no entanto, a elementos da religião judaica e
muçulmana. Entendem estas que o porco é um animal imundo e que a sua carne não
deve ser consumida (devido aos seus hábitos de alimentação e à sua prática de,
inocentemente, gostar de se banhar em lama em dias de calor, dado não possuir glândulas
sudoríparas e, portanto, não conseguir suar para se arrefecer).
Não podemos esquecer que, dada a abundância de alimento
que dele retiramos, a domesticação do porco é tida como um factor fundamental no aumento da esperança de vida das
populações europeias do Neolítico (10000 A.C. – 3000 A.C.). Se hoje aqui
estamos devemo-lo, em parte, ao porco.
Em Portugal
O culto ao porco tem, na península ibérica, milhares
de anos. É o animal mais representado em pinturas e esculturas do período pré-histórico. Não é de admirar: o porco é um animal
dócil, sociável e inteligente, que se alimenta de praticamente tudo o que haja
e que se desdobra em alimento nutritivo para todo o ano - em banha, presunto,
toucinho, lombo, salpicão...
Os forais dos primeiros reis portugueses
fazem amplas menções a porcos, porcas e leitões, sinal da sua importância para
a alimentação dos nossos antepassados. O leitão era, no entanto, considerado um
enorme luxo reservado apenas às classes mais abastadas: por cada leitão consumido
estar-se-ia a abdicar de um porco adulto que, naturalmente, geraria muito mais
alimento e rendimento.
Há, em Portugal, inúmeras localidades
que ostentam orgulhosamente o seu nome, por exemplo: Matança (duas localidades), Vale
da Porca (três localidades), Mata Porcas (duas localidades), Toucinhos, Venda
do Porco, Porqueira (três localidades) etc.
O porco está também ligado a várias celebrações
religiosas, sendo vários os santos a quem são, tradicionalmente, prometidas
partes de porco e de fumeiro em troca de saúde e de boa fortuna. São eles: S.
Amaro, S. Antão (padroeiro
dos talhantes, salsicheiros e porqueiros), S. António e S. Sebastião.
O
incontornável fumeiro português nasceu com a necessidade de conservar a carne e
todas as restantes partes do porco em condições de serem consumidas ao longo de
todo o ano. O porco é tradicionalmente morto em pleno inverno, altura em que a
temperatura mais fria atrasa a degradação da carne e entranhas enquanto estas
são devidamente tratadas. A técnica de conservar pelo sal e pelo fumo, porém,
não é nossa: já os gregos, os romanos e os celtas o faziam antes de nós.
Há,
em Portugal, três raças de porcos autóctones: o Alentejano, o Bísaro e o
Malhado de Alcobaça. O porco pode também dividir-se em três categorias: o
leitão, abatido com cerca de 8 semanas de vida e oito quilogramas de peso,
alimentado apenas a leite; o varrão, porco que não é castrado e que, portanto,
se destina à reprodução; e ainda o porco, que se abate com cerca de um ano de
idade e peso aproximado de 100 quilogramas.
A
tradição é, às vezes, má conselheira – o mito da carne de porco bem passada:
Fomos
ensinados pelos nossos pais e avós de que a carne de porco é uma carne “muito
perigosa” e que portanto precisa de ser “muito bem cozinhada”. Esse preconceito
ainda se verifica nos dias de hoje, ficando muitas pessoas arrepiadas ao ver
alguma parte rosada numa peça cozinhada de porco. Isso levou a tristes anos de
assados de porco secos, duros e sem sabor.
Este
preconceito vem dos tempos em que os porcos eram criados em casas ou terrenos
baldios, alimentando-se de praticamente tudo o que pudessem, especialmente
restos de comida e lixo que lhes eram dados pelos seus proprietários. Esses
restos de comida continham muitas vezes carcaças de pequenos roedores ou gatos
infectados com o verme Triquina, responsável pela Triquinose. Esses vermes, com
aproximadamente 3mm, entravam assim no corpo do porco pelo aparelho digestivo e
reproduziam-se em centenas de pequenas larvas que se espalhavam, através dos canais
linfáticos e da corrente sanguínea, até ao tecido muscular do animal, assumindo
a forma de pequenos quistos. A transmissão para os humanos fazia-se através do
consumo de carne de porco mal passada (em alguns casos, raros, a infecção foi contraída
pelo consumo de carne de javali, de urso e de alguns mamíferos marinhos).
A ciência
A verdade é que muito mudou nas últimas décadas. A produção actual de carne de porco é muitíssimo
mais higiénica e segura e a sua alimentação muito melhor. Tanto assim é que o
zeloso departamento de agricultura do governo dos Estados Unidos decretou
finalmente, em 2011, que basta cozinhar cortes inteiros de porco até uma
temperatura interior de 145ºF (62,7ºC), seguida de um período de descanso de 3
minutos, para obter uma carne segura mas também rosada e suculenta. A Triquina
também pode ser eliminada pelo congelamento da carne a -15ºC por 3 semanas ou a
-20ºC por 24 horas. A carne picada de porco continua a ter que ser cozinhada
até uma temperatura de 160ºF (71,1ºC).
A carne de porco é belíssima e, bem cozinhada,
pode ser tão deliciosa e suculenta como qualquer outra. Por favor, respeitemos
o porco e demos-lhe a confecção que ele merece.
Este artigo foi escrito por:
Ângelo Paupério
Cozinheiro
angelopauperio@yahoo.com
Bibliografia
Harold McGee, On Food and Cooking, Scribner, 2004
http://www.porcoefumeiro.pt
http://www.museudobisaro.org
http://www.confrariadosenchidos.com
www.asae.gov.pt