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OS PRIMÓRDIOS DA ALIMENTAÇÃO


Reconstituição 3D de um homem de Neandertal. Fonte: National Geographic

Ainda antes de surgir a escrita já por cá se comunicava, caçava e cozinhava. 

Neste artigo escrevo sobre a origem da cozinha ou sobre o acto de cozinhar que, como todos sabemos está umbilicalmente ligado à evolução da civilização.

Não procurei ordenar o que é por si uma soma de vários acasos. 

Milhões de cisnes negros depois aqui estamos nós, a escrever e a ler através de redes mais ou menos inteligentes, mais ou menos artificiais.


Períodos em análise:

Paleolítico: surgem as primeiras ferramentas em pedra. Usa-se fogo. As comunidades são nómadas e deslocam-se de local em local conforme as estações do ano, em função da diversidade e qualidade dos alimentos. 

Neolítico: a caça deixa de ser principal fonte de subsistência e surge a agricultura e a domesticação dos animais. Surgem as primeiras aldeias ou comunidades estabelecidas em determinado perímetro geográfico. 




Os dentes e a alimentação

Ao longo da evolução humana foram criadas diversas formas de manipular os alimentos antes de os mastigar. Ao longo de milhares de anos as marcas da alimentação ficaram para sempre cravadas na dentição. Hoje podem ser observadas e estudadas para melhor compreensão dos hábitos dos nossos antepassados. 

As cáries dentais são provavelmente um dos problemas de saúde mais antigos em humanos. 

De acordo com análises aos fósseis dos primeiros hominídeos que viveram na Europa a prevalência de cáries nas populações de austrolopitecus e homo habilis é muito reduzida. Sabe-se que, mais tarde, com a análise da dentição do homo erectus, podemos encontrar um maior número de cáries na dentição, por este consumir muito mais açúcar que os primeiros.

Existe porém uma exceção para David Frayer que nos explica que nas populações do paleolítico (primeiros dois grupos) no sul de Portugal a prevalência deste problema dental é maior que a média o que, segundo o autor, pode estar relacionado com o consumo de figos e mel, que na época já existia nesta região em abundância por ser mais temperada que o restante planeta que era em média mais frio 10 graus Celsius do que é hoje. 

No período após já povoava o planeta terra o homem de Neandertal e temos evidências claras através da sua dentição de que sofria de raquitismo, uma doença causada por insuficiência  de vitamina D, pois a luz solar era escassa e os períodos de chuva podiam estender-se por vários meses.


Dentes de uma criança de 4 anos Neandertal descobertos numa caverna Shuqba, perto de Jerusalém.



Caçadores ou oportunistas?

A tese mais apropriada é a que defende que o homem primitivo (australopithecus) não caçava. Alimentava-se de carne crua de mamíferos que eram mortos por outros animais. 

 

Os primeiros hominídeos seriam vegetarianos?

À luz do conhecimento e da tecnologia de análise que temos ao nosso dispor a resposta é sim. Os primeiros hominídeos, por possuirem uma inteligência muito limitada e por viverem em ambientes não tão temperados como os de hoje, limitavam-se a recolher o que aparecia, tais como raízes, bolbos, pequenas bagas, frutas, frutos secos, ovos que recolhiam nos ninhos, tanto de aves como de reptéis. 

Boas notícias ou nem por isso.

Depois do aquecimento do continente europeu, isto no período mesolítico (que fica na transição do paleolítico para o neolítico) a atividade centrou-se mais na pesca e na caça de pequenos animais. 

No neolítico formam-se as primeiras civilizações e a necessidade da caça esvaiu-se para dar lugar à criação de animais para abate. Esta técnica torna-se uma garantia mais estável às populações que deixam de ser tão dependentes da natureza. 

Mas (na história existe sempre um mas!) com isto, o povoamento tornou-se mais denso e acelerado e logo a seguir as populações ficam mais propensas às fomes periódicas. À medida que assistíamos ao aumento considerável de indivíduos em cada comunidade houve, consequentemente, uma redução drástica na variedade de alimentos consumidos e como tal uma esperança média de vida muito mais curta. 


Convívio?

Uma das primeiras provas da origem da socialização à volta da mesa está no Iraque. Segundo alguns intérpretes de pinturas do paleolítico superior naquela região é claro que ingeriam bebidas fermentadas com plantas alucinogénias para que provocasse uma "embriaguez" convivial. 

Formavam-se também os primeiros grupos de várias famílias que se juntavam para encaminhar manadas inteiras de animais de grande porte para as armadilhas que estes criavam e, com o sucesso das caçadas, acontecia naturalmente a partilha das carnes com todos os participantes. 





Alterações climáticas e a evolução 

Nas jazidas deixadas pelos homo habilis na África oriental há restos abundantes de carcaças de animais (desde tartaruga a elefantes) e objetos primitivos de pedra lascada. Estes hominídeos são considerados os primeiros primatas caçadores. A razão por tais jazidas ou depósitos, alimenta a teoria que ao redor dessa área estaria verdadeiros acampamentos com dezenas de pessoas a alimentarem-se destes animais. Poderá estar aqui a prova das primeiras relações entre homens e mulheres. 

A seca que ocorreu nesta fase provocou em África oriental o recuo das florestas e a expansão das savanas. Isto levou a que estes nossos antepassados ficassem com poucos recursos vegetais e para se alimentarem foram forçados à caça e à organização entre pares para melhores caçadas e maior abundância de alimento. Por força desta seca severa o austrolopitecus tornado caçador, evoluiu e é graças a esse fator (a par do fogo) que se terão desenvolvido as primeiras comunicações pela necessidade colaborativa das dificuldades externas que sentiam. 

Com a evolução passamos ao homo erectus  que sai de África e começa a implantar-se em regiões mais temperadas e a correlação entre o consumo de carne e alimentos vegetais indica-nos que estes tinham uma alimentação mais equilibrada. 

Os vegetais por serem raramente conservados são difíceis de avaliar quanto à sua função alimentar. Mas é legítimo afirmar que com o domínio do fogo estes abriram um leque de potenciais recursos para serem consumidos pelo homem. 

Conservação

Com a caça em massa houve também a necessidade de se criar um engenho de conservação a longo prazo para a carne. O clima no paleolítico era seco e frio. A conservação passava por secagem, fumagem ou simplesmente congelação em buracos escavados na terra (o solo estava permanentemente congelado). Essas cavidades foram descobertas na Europa central onde o telhado destas era sustentado por presas de mamute. As peças eram consumidas secas ou rehidratadas por cozedura prolongada em recipientes de madeira ou dentro do estômago de animais ou pele de animais. As peças grandes seriam grelhadas em espetos (alguns exemplares em osso chegaram até aos dias de hoje).


As grandes revoluções do período mais tardio

Com a fusão dos glaciares cujo recuo é nítido após 8000 A. C. à Europa aparece um clima mais temperado e húmido. A flora passa a ser dominada por pinheiros, bétulas e aveleiras e instala-se um outro tipo de fauna constituída por javalis, veados, cabrito montês. 

Em contraste com período paleolítico a alimentação do mesolítico é marcada por uma grande diversidade e abundância que pode ser explorada numa área geográfica menor. 

As fontes de alimentação decrescem e dispersam sendo ainda mais difícil a caçada em florestas tão densas. É uma época de grande abundância e os grupos do mesolítico foram levados a explorar uma enorme variedade de espécies de animais e vegetais em tamanho bem mais reduzido, tais como  caracóis, coelhos e aves, assim como espécies vegetais como  as lentilhas, framboesas e mirtilos. 

Por que razão estas espécies são importantes? 

Com a frequência de colheita superior  e o menor tempo de conservação  surge um novo dilema e de imediato a consequência que conhecemos hoje como sedentarismo. Ao contrário das espécies anteriores de hominídeos que implicava a deslocação para não morrerem à fome aqui implica uma estadia prolongada em sítios de maior abundância e só alterada, em casos extremos de escassez. 

A primeira revolução alimentar: o cereal como o trigo e o centeio

A partir do neolítico é notória a importância que o cereal assume pela quantidade de mós de pedra que foram encontradas nas regiões do médio oriente  e mais tarde na Europa)  neste período. A agricultura e a criação de gado surge neste período com o claro objetivo de intensificar a produção das culturas mais consumidas. Mas não se pense que são só vantagens. Por ter sido dada uma exagerada importância aos cereais observa-se a partir deste período uma deficiência e carências nutritivas, levando à diminuição da esperança média de vida (uma vez mais) destas populações assim como o facto de agora estas viveram mais agrupadas e em maior número a propagação de epidemias torna-se mais fácil e rápida.

 Uma segunda revolução alimentar dá-se com a utilização da olaria. 

Inicialmente a olaria não foi  criada para a culinária, mas sim para decoração(  como foi registado na Grécia e no Paquistão) e /ou para produzir e conservar bebidas fermentadas como um foi registado no irão através de análises químicas ao depósito de um pote encontrado num campo de arqueológico datado de 5500 A.C. onde foi evidenciado o seu uso com a finalidade de armazenar cerveja. Durante vários séculos após o surgimento destes instrumentos era ainda mais comum cozinharem de forma directa como grelhar, em placas aquecidas ou em buracos na terra com pedras quentes. Neste mesmo período aperfeiçoam-se as estruturas de combustão mais complexas como lareiras dentro das habitações e os primeiros fornos fechados (como os de pedra que ainda hoje usamos).


Este é o artigo semente de um tema muito vasto que por imposição da curiosidade terá que ser mais desenvolvido nas próximas publicações. 


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Os molhos através dos séculos

A doçaria conventual do séc. XV ao séc. XIX


Pintura mural em Lascaux, França



Bibliografia:

Food in civilization - Ritchie, Carson, 1981

Ancestral appetites: food in prehistory, Gremillion, Kristen,2011

Au Néolithique: Les premiers paysans du monde, Louboutin, Catherine, 1990

Histoire de l´alimentation: de la préhistoire à nos jours, Cornette, Joel, 2021

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