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LUIZ DA SILVA -RESTAURANTE S.GABRIEL

               
Como profissional de cozinha que sou tenho uma visão muito diferente do mundo que me rodeia, ou seja, mais próxima da realidade. 

A realidade está, por vezes, muito afastada do que nos é vendido pela imprensa tradicional - cada vez mais subserviente aos interesses privados  

A cozinha em Portugal não é constituída por um grupo de vinte cozinheiros. Existem milhares de pessoas, tão ou mais interessantes para se conhecer:
Não se perdem em jargões habituais, não vestem jaleca de algodão egípcio, não se apresentam ao público com relógio e, mais importante ainda, têm humildade. 

Saber e não parecer saber é o critério transversal a todos os que aqui são apresentados. 

Toquei a obra de Luiz e o resultado disso está no fim da entrevista. 



Quem é o Luiz da Silva?

Para quem não me conhece sou Brasileiro nascido em Moreno-Pernambuco. Tenho 26 anos e 12 deles vividos aqui. Cheguei a Portugal em 2006 a convite dos meus padrinhos Mónica Mendes e Pedro Mendes, que me trouxeram para estudar. Hoje estou e estarei sempre grato. Resumindo: sou alguém que acredita que com trabalho chegamos onde queremos e até hoje não me sinto errado.

Tens dois amores, qual deles gostas mais?

Bob Marley dizia que se amamos duas pessoas, devemos sempre escolher a segunda, pois se gostássemos da primeira, não teríamos olhos para outra. Eu como ainda só estou apaixonado pela padaria, fico pela cozinha. O que tem de ser tem muita força e como se diz no Brasil, "deixo a vida me levar".


Quais são as tuas maiores influências na cozinha? e na padaria?

Na cozinha tenho poucas mas boas. O Chefe Leonel Pereira é alguém que, sem dúvida, esteja onde estiver, nunca o vou esquecer. Foi e é alguém que respeito muito, lembro-me de falhar umas técnicas e ele ia ao fogão furioso e dizia o caminho que tinha de fazer para correr bem. Há poucos chefes assim, ele é muito experiente mesmo. 
O João Viegas (Sub-chefe) é sem dúvida dos cozinheiros mais completos que já o conheci até hoje e  o  Leandro Araújo(Sub-chefe júnior) dos cozinheiros mais criativos, de combinações improváveis, consegue juntar o estranho com o incerto e fazer uma combinação fabulosa. Na padaria confesso que não tenho nenhuma referência. Aprecio sim e estou sempre de olho ao trabalho dos grandes padeiros em Portugal, como o Paulo Sebastião da Isco, o Mário Rolando da Padaria Da Esquina e o Paulo Cardoso da Lab. Quando for grande quero ser como eles, seja na cozinha ou no forno.


Como é trabalhar com três dos melhores profissionais portugueses: Chefe Leonel Pereira, João Viegas e Leandro Araújo?

Já o faço há 6 anos e o trio, tal como a equipa têm vindo a ficar cada vez mais fortes. O João respeita a experiência e os conselhos do chefe Leonel, e o chefe respeita a loucura e as criações do João e do Leandro. Todos exigentes e diferentes. É de facto um desafio todos os dias, estão atentos a tudo e, para todos, um milímetro é um centímetro. Eu, por enquanto, mantenho-me focado na minha secção.

Como surgiu o gosto pelo pão?

Trabalho no S. Gabriel desde 2013. Lembro-me de ver o Leandro antigamente a fazer pão nas bancadas de mármore do restaurante, não que já não o faça, mas por ter outras responsabilidades e prioridades acabo eu por fazê-lo. 50% do que sei de pão foi ele que me ensinou: amassar, massa mãe e muitas outras coisas. A outra metade fui aprendendo mais a fazer e a estagiar.  Em tempos fui um chato, perguntava e perguntava e ainda o faço, mas cada vez menos. Estou há dois anos nisto e acredito que as minhas massas estão a passar uma boa fase. Obrigado Leandro, Roberto Paiva, Raul Coelho e a todos aqueles que me ensinaram e continuam a ensinar.


Quais são os maiores desafios na produção de padaria para um cozinheiro, num restaurante?

Passa por mostrar a nossa polivalência, mas não é fácil. Pão requer atenção e carinho. Sou chefe de entremetier e em épocas altas o trabalho aperta e há mise en place para fazer com fartura e sem querer o pão fica sem o carinho pretendido, mas o maroto nunca há-de faltar.

Restaurantes que produzam o próprio pão, inclusive os que pertencem ao guia vermelho, contam-se pelos dedos das mãos. A posição de padeiro ainda é tida como dispensável?

Penso que não, cada vez há mais restaurantes com produção própria. Mas respeito, cada restaurante funciona à sua maneira e cada um sabe a sua prioridade, mas continuo com a ideia que quanto mais polivalente for uma equipa e a casa o cliente que se sentar nas nossas mesas, só tem a ganhar.




Consideras que o pão na restauração, em Portugal, acompanha o mesmo patamar qualitativo da cozinha?

O pão está a evoluir, graças aos grandes padeiros nacionais, que estão a lutar para que isso aconteça, mas infelizmente e na minha opinião,  há bons restaurantes que não têm um bom pão e há casas com bom pão que não têm boa comida. É relativo e dependerá sempre do interesse de cada um. O Guia vermelho gosta e quando eles procuram estrelas, basta observarem as cestas (do pão).

Pela tua experiência o cliente valoriza o pão natural?

Na minha opinião, em cada dez clientes que comem pão natural, quatro deles sabem o que estão a comer. Hoje em dia há bons fermentos e aditivos que disfarçam bem os pães industriais, mas sim, a consciência está a aumentar, tal como a  valorização do natural. Estão a descobrir.


Massa mãe (o que é? VER AQUI) ou yeast water (o que é? VER AQUI?

Massa mãe é massa mãe, tenho 3 tipos. O yeast water é bom mas se não tivermos cuidado pode estragar o pão, se mal utilizado.  Na minha recente experiência a melhor maneira de se utilizar um yeast water é fermentar uma  fruta: uva, maçã ou citrino em água durante 6/7 dias. Alimentar a farinha com essa água umas 14 horas antes de fazer o pão e utilizar aquele fermento que se vai formar no nosso pão, em vez da tradicional massa mãe. O sabor e o aroma são completamente diferentes com a massa mãe. Nós já sabemos o que a casa gasta portanto, no mundo dos yeast water, podemo-nos divertir bastante.




A Sul a água é substancialmente diferente da que temos no Norte. Sentes diferença no pão ou usas engarrafada?

Se usarmos água da torneira, seja onde for é sempre um risco. O cloro ou o sal que elas por vezes possuem podem não danificar, mas contaminar e acaba por não ser tão saudável, não por luxo ou estética, mas por uma questão de confiança. Eu, no restaurante, utilizo água do garrafão, apesar de termos boas águas correntes.


A farinha é a base de qualquer bom pão. Sem contarmos com as produções massificadas, a farinha de qualidade é um bem escasso. Ainda a consegues comprar com facilidade ou importas?

Existem fornecedores como o Paulino Horta VER AQUI  ,que se não me engano fornece as grandes padarias da cidade, e até nos dá a possibilidade de encomendarmos sacos com quantidades reduzidas, dentro da vasta gama de farinhas que existem e ainda recebermos quase à porta de casa. É uma mais valia para nós, é um anjo.  Eu como ainda não produzo grandes quantidades, costumo comprar sacos de 1 ou 2 kg nas lojas de alimentação saudável. Vou variando entre espelta, integral e centeio,fazendo as misturas à minha maneira.

Ferran Adrià disse há uns anos atrás que o pão num restaurante não fazia sentido. Qual achas que será o lugar deste no futuro, tendo em conta as novas tendências alimentares da população?

A meu ver, o pão de fermentação natural vai regressar às mesas e não só. Estão a comprar cada vez mais. É disso prova o facto de as indústrias estarem a desenvolver massas mãe em pó. O termo natural está cada vez mais presente nas padarias, sejam elas bem ou mal feitas, portanto acredito que sim, vai estar cada vez mais presente.

Estás a desenvolver um projecto com o Município de Torres Vedras. Em que consiste?

Sim, estou a desenvolver um pão de feijão para a cidade. Enviei para a Câmara Municipal uma proposta de receita minha (segredo), e o feedback foi: "Parabéns Luiz". Entretanto estou a aguardar uma entrevista para a revista da cidade e um sinal para avançar com a receita e disponibilizá-lo ao público nas padarias da cidade. Os meus padrinhos, como são proprietários de vários estabelecimentos na cidade, vão dar uma força dando luz branca ao padeiro deles para se tornarem pioneiros no produto, até se espalhar pela cidade e também já tenho outras pastelarias interessadas. Portanto, já existe o plano A,B,C para a ideia se concretizar.

Tenho-te visto entre o teu projecto @pao.comanteiga VER AQUI e a cozinha do S. Gabriel. No futuro como te vês, num dos lados ou nos dois?

Estou comprometido com o S. Gabriel para a época 2019. Vou continuar a fazer os meus pães se assim o chefe entender ou nas minhas folgas em casa. Agora é máxima concentração
na cozinha, que é o que me paga as contas neste momento. O pão vai ser sempre estudado, afinado e apaixonado, a página não vai parar e quanto ao meu futuro... só Deus sabe.



No futuro tencionas regressar ao Brasil?

A família que lá está, está bem. Tenho cá a minha mãe e a cada dia que passa sinto-me mais português. Tenho programado a minha vida toda por aqui e dificilmente acho isso possível, o Brasil está a passar um momento difícil e talvez quando melhorar eu já possa estar melhor organizado. 
Portugal tem muito potencial para quem quer trabalhar, que é o que me dá mais prazer.


A obra 

Este é um pão de trigo e de trigo integral, que me foi enviado por Luiz. 
65% de hidratação e 20% de levain.
É mais do que evidente o domínio da técnica. 
A massa foi batida q.b. O levain foi bem tratado resultando num pão com qualidades muito particulares: 
Crosta fina, mas crocante.
Miolo fofo.
Acidez no limite,como eu aprecio. 



Fotografia: Tiago Lopes


Fotografia: Tiago Lopes




Fotografia: Tiago Lopes

Fotografia: Tiago Lopes



não sei se fazer um poema não é fazer um pão
um pão 
que se tire do forno e se coma quente ainda por entre as linhas
Herberto Hélder 


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