Chefe Nuno Diniz. Fonte: Revista Sábado |
Capa do livro. Fonte: Âncora Editora |
Foi apresentada no dia 2 de Dezembro de 2024, na EHTL, a obra mais recente do Chefe Nuno Diniz.
Escrevi, orgulhosamente, um dos três prefácios, com a companhia de Sónia Alcaso e o Chefe José Avillez.
A inquietude do pensamento ou a materialização da profundidade humana: As palavras. Agostinho Da Silva, Raúl Brandão, Professor Adriano Moreira e Bob Dylan são evocados, com mais ou menos expressão. Aqui e na obra. A melhor solução é comprar.
Chefe para uns, Professor para outros. Na comunidade sempre foi acarinhado, venerado. Fora, nunca unânime, muito menos compreendido, mas sempre coerente, feliz e orgulhoso do seu percurso (e com razões para tal).
Este conjunto de perguntas e respostas que se faz publicar não são sobre o livro, mas sobre o homem, sobre a vida, sobre a história, sobre o presente ou então sobre tudo. A melhor solução é ler.
Durante o período Romano os subprodutos da uva, do mel, do óleo e das entranhas, por exemplo, eram imensos, muitas pessoas sabiam ler e escrever, conheciam a aplicação das ervas para tratamentos vários. Tinham conhecimentos matemáticos e filosóficos avançados. A discussão sobre a origem do ovo e da galinha já existia nos banquetes. Passadas várias centenas de anos, num passado mais recente da nossa história a maior parte da população não sabia ler nem escrever, os subprodutos foram igual e drasticamente reduzidos. Evoluímos em quê?
O famoso progresso. O mesmo progresso que justificava que ocasionalmente (quando me lembrava) iniciasse uma das minhas aulas teóricas com a seguinte provocação: "Não há nada mais prejudicial do que a violenta chegada do progresso!". Esse mau progresso está aliás evidente na alegoria que abre o livro com o título "O Sítio". Depois há o desaparecimento das culturas, por vezes notáveis, que levaram ao oblívio de conhecimentos únicos. Os impérios das antiguidades que soçobraram devido a guerras, doenças, religiões, "descobrimentos"...
Atualmente, há um progresso diário embora, paradoxalmente, o conhecimento insista em minguar. Não estou nada interessado em regredir no tempo, não digo nunca que "dantes é que era bom" (até porque não é verdade), mas gostava bem que muito do notável conhecimento já esquecido ou perdido, pudesse ser recuperado. Enfim...
Sezelhe, Montalegre 2024. Fotografia: Tiago Lopes |
Agostinho da Silva diz no seu mítico programa Conversas Vadias que as pessoas mais cultas que conhecia eram analfabetos. O que acha desta afirmação?
A cultura significa muita coisa. Na aldeia, onde vivo atualmente, a maioria das pessoas tem a 4ª classe e no entanto... tal como os pais, os avós e outros antes, sabem muito. Entendem o vento, percebem a água, conversam com a terra... Ainda aproveitam tudo o que parece inútil, indo buscar ao monte, tojos, giestas, carquejas, urzes, em que cada qual tem seu uso.Aproveitavam a palha do centeio para os telhados, para os colchões, para as cortes dos animais. Sabiam fazer sapatos a partir de árvores. Com as mesmas madeiras, faziam as varas, as rodas e estruturas dos carros de bois, móveis, masseiras, arcas...Trabalhavam o ferro em engenhos complicadíssimos. Cortavam a pedra na serra e construíam casas, tulhões, palheiros ou cortes, que resistem centenas de anos.Faziam cestos, havia alfaiates, faziam extraordinário pão que antes tinha sido grão, moído por eles mesmos, nos moinhos de água que também haviam construído.Sabiam e sabem tudo sobre a vida e a morte do porco, das vacas, das cabras, das ovelhas, das galinhas, dos coelhos...Ora eu, que penso ser razoavelmente culto, não sei fazer nada disto!
Além do gosto pela música, a literatura e a cozinha que temos em comum, existe um outro, a agricultura. Quais as lições que retira/retirou do trabalho da terra?
O gosto único de ver crescer, apanhar e cozinhar, eleva o mantido prazer de cozinhar para outro nível. O sabor é outro (mesmo que não seja), o valor e reconhecimento a quem ainda trabalha a terra de forma quase natural, é constantemente reconhecido. Embora desde há muitos anos referisse o nome dos produtores (por exemplo nos cozidos iniciados em 2006), o trabalhar a terra, mesmo quando de forma leve e recreativa, ajudou a perceber ainda melhor como estamos dependentes e deveríamos estar mais gratos de quem anda pelo mar e pela terra, a apanhar, semear, pescar, criar, matar e arrancar...Já tenho comentado frases razoavelmente ignorantes como "um ovo é um ovo". Pois só quem nunca foi buscar um ovo à capoeira, de galinhas que debicam o solo em liberdade, é que não entende a diferença entre um ovo e um ovo. E isto é verdade para quase tudo.Num mundo perfeito, seríamos capazes de produzir e criar tudo o que comemos. Vivo quase nesse mundo.
Depois de ler a crónica "A chegada" do ano 2020, que considero muito forte, assaltou-me a seguinte pergunta: sente-se sozinho?
Essa é de resposta rápida e fácil:Não!
Nunca me senti sozinho, embora me agrade a solidão. Andei toda a vida no meio de milhares de pessoas, em todas as grandes cidades de quase todo o mundo, cozinhei para um número gigantesco de pessoas que nem consigo calcular, muitas vezes, depois desses almoços e jantares, tinha que ficar a falar com imensa gente que não conhecia e que simpaticamente queriam dizer qualquer coisa, nasci e vivi em Lisboa, dei aulas a centenas de alunos, etc...Precisava mesmo do sossego, e como me dou bastante bem comigo e paralelamente mantenho todos os interesses de toda a vida, incluindo tocar quase todos os dias, escrever, ouvir música, a que se junta agora o passar tempo a brincar aos agricultores, não sinto qualquer falta do movimento e da confusão.Estou muito bem como estou.
Montalegre 2024. Fotografia: Tiago Lopes |
Cresci a ouvir que a vida é muito curta, mas na página 287 escreve que a vida é muito comprida para ser vivida com tristeza. O emprego da palavra comprida terá algo por confessar?
A noção de tempo é subjectiva. Quando jovens é muito comprido, quando velhos começa a sentir-se cada vez mais curto.A frase, tem mais a ver com a alegria e com o prazer. Calculo, ou melhor, tenho a certeza, que uma vida infeliz, com enormes dificuldades e carregada de sonhos perdidos e nunca concretizados, será dolorosamente longa.Eu, que sei ser um privilegiado, tive uma vida espantosa, onde fiz e alcancei tudo o que queria e por vezes até o superei. Estou alegremente preparado para morrer sem ter que me queixar de nada.
Qual foi a decisão mais difícil que tomou?
O fecho do Revolução.
A brigada era na sua totalidade composta por alguns dos melhores alunos que me passaram pelas mãos, de quem me tornei amigo (amizade que hoje se mantém) e portanto, quando finalmente foi claro que os prejuízos acumulados devido aos constantes soluços provocados pelo Covid, eram insustentáveis, foi muito difícil comunicar o fim do projecto. Depois porque também acreditei que o Revolução ia ser um enorme sucesso, pela certeza que tinha na cozinha que estávamos a fazer, o assumir do falhanço (primeiro e único da minha vida) foi um osso duro de roer.
Anos mais tarde, foi mais uma aprendizagem sobre o valor do efémero.
Chefe Nuno Diniz e a equipa do restaurante Revolução. Fotografia: Rui Gaudêncio. Jornal Público |
O que o irrita mais quando visita um restaurante?
Normalmente nada me irrita, mas quando me sussuram: "bem vindo à nossa experiência", seguido de pergunta "alguma alergia?", confesso que após a primeira reação (de riso por já estar à espera) começo a sentir-me meio maçado. Esta linguagem que se repete na maioria dos restaurantes, não tem para mim, qualquer justificação! Se alguém tem alergias sérias, deveria comer em casa. Se são alergias mais ou menos, então é um problema de quem as tem e não do restaurante. Já temos trabalho suficiente para nos termos que preocupar também com as doenças de cada um. Doenças é com o médico e com o hospital...
Depois, o que realmente me perturba, é quando, depois de explicações longas (que ninguém pediu), exibição fútil com a descrição de técnicas (em que muito poucos estão interessados), e indicações sobre a ordem porque se deve comer determinadas entradas (embora não me agrade, reconheço que poderá ser útil para a maioria das pessoas), tudo afinal culmina em pratos com pouco sabor, apesar de muito bem decorados. Um restaurante não é uma galeria de arte, é um local onde as pessoas normais vão à procura de passar uns bons momentos e comer muito bem...
Por outro lado, e para mim francamente desagradável é ir a um restaurante de suposta boa comida regional e ser presenteado com uma cozinha sem qualquer chama, produtos manhosos e técnica obviamente deficiente. Aí sim, confesso-me violentamente decepcionado.
Felizmente a imensa maioria de refeições, que incluem ter comido em cerca de 200 restaurantes com estrelas (uma, duas ou três), foram francamente positivas e por vezes, mesmo extraordinárias.
Na página 280 na "Dimensão do afeto" escreve sobre as pessoas que de uma forma ou de outra estão ou estiveram presentes na sua vida. Quem teve um papel mais relevante na construção do chefe Nuno Diniz enquanto homem?
Os meus pais e especialmente a Mãe, no que diz respeito à educação e estabelecer de princípios, que tenho tentado manter inalterados. Alguns professores (como o Prof. Adriano Moreira), no que diz respeito à instrução e preparação para a complexidade e sede culturais.O viajar por todo o mundo, que me abriu de forma definitiva os olhos, para em vez de apenas olhar, começar mesmo a ver. Depois num registo diferente, a literatura, a divulgação radiofónica e a música que me acompanham, desde muito jovem.
Nos últimos anos, a minha experiência enquanto professor, que me relembrou tudo o que aprendi, e me permitiu corrigir tudo o que, ocasionalmente tinha sido mal ensinado, fui ganhando uma nova visão e compreensão sobre os anseios, sonhos e aspirações dos jovens que me foram passando pelas mãos. Por vezes alimentei esses sonhos, por vezes tive que demolir as ilusões, por vezes aconselhei ficar, outras sugeri a partida... a riqueza da experiência do ensino, quando séria e decidida, é/foi magnífica e levou-me a melhorar enquanto homem e profissional.
Finalmente, a altura mais completa e rejubilante de toda a minha vida: cuidar, com todo o amor e carinho da minha Mãe, nos seus últimos quatro anos de vida. E então, com humildade rara, percebi que estava por fim a executar o mais importante de tudo o que fiz ao longo de uma vida bem cheia.
Na crónica "A cozinha da época, a cozinha do sítio” de 2014 refere que "Quando a facilidade passa a facilitismo então transformamo-nos em ignorantes" na sua opinião, na área da cozinha, vivemos a era do facilitismo, do fácil, do "conhecimento" superficial?
Não é novidade. É algo que acontece há muitos anos, mas que se vem agravando devido ao progresso, aparentemente seguro e simples, das técnicas (realmente úteis quando as dominamos e estamos preparados para também trabalhar sem elas). Concretizando: não há dúvida sobre as vantagens, em determinadas condições, da cozinha (por exemplo) em "vácuo". Mas se a máquina de vácuo se avariar, temos que dominar as técnicas mais clássicas, do controlo das cozeduras. Ou seja, a aprendizagem não pode/não deve saltar etapas, que nos serão sempre decisivas.O conhecimento é agora maioritariamente superficial, tanto por parte da maioria da brigada, como, muitas vezes, por parte de quem a chefia.A especialização (saber fazer bem apenas uma ou duas coisas) não será nunca mais enriquecedora do que o conhecimento generalizado e abrangente. Quem sabe, executa e estuda cozinha, será sempre melhor se tiver umas noções de arquitectura, filosofia, história, sociologia, pintura, etc, etc...O conhecimento, mesmo que razoável, num único ramo, ou área, é insuficiente. E depois, a grande maioria insiste em não ler, em não reflectir, em não duvidar. Toda a vida adulta, evoquei uma frase que me tranquiliza e desafia: " se não sabes, porque é que perguntas?"
Precisamos de saber. Saber mais, para poder duvidar e, com alguma certeza, perguntar, para assim poder perseverar na aprendizagem.
Sezelhe, Montalegre 2024. Fotografia: Tiago Lopes |
Considero que na nossa área existe uma mediatização desmedida. A qualquer vassoura vestida com jaleca é direcionado um microfone e uma câmara de filmar. Concorda? Será resultado de uma classe de jornalistas obediente às ditas agências ou por pura e simplesmente não existir qualquer tipo de critério? Tacanhez?
Como em tudo há excepções, e conheço ainda alguns jornalistas que o são mesmo, que investigam, que fazem perguntas inteligentes, que não estão obcecados com a exibição parola...Mas a maioria, infelizmente, não faz a mais pequena ideia do que é ser jornalista gastronómico. Porque não aprendeu, não percebeu as idiossincrasias das diferentes gastronomias, não praticou a diversidade. Ora, para não se pensar (o que me é indiferente) que nutro qualquer espécie de embirração com estes jornalistas de meia tigela, reconheço sem qualquer dificuldade que, com os cozinheiros, passa-se exactamente o mesmo!
Quando foram bem preparados, quando se dedicaram a sério, quando praticam e reflectem, provavelmente, e desde que encontrem um pouco da necessária sorte, vão conseguir chegar longe. Quando sem grandes estudos e ainda menor prática séria, se começam a autodenominar "chefs", a exibir sorrisos, penteados e palavras sempre ocas, então vão durante algum tempo e apesar de algumas figuras tristes e às vezes até presenças nas televisões, resistir durante umas épocas, para depois iniciarem um penoso desaparecimento. Se ainda tentam passar por um restaurante, mesmo usando uma jaleca onde está escrito "Chef A...", nunca serão verdadeiramente respeitados nem reconhecidos pelos seus camaradas ou subalternos.
O processo de decisão é quase sempre influenciado pelos nossos valores. Quando entrevistava um cozinheiro para a sua brigada o que mais valorizava?
Para lá do óbvio (saber, ou estar ansioso por aprender a sério), sempre foi para mim fundamental, tentar perceber quais os princípios, a humanidade, a capacidade para ir sempre mais longe. Era fundamental que conseguisse ter uma conversa sobre cozinha, fosse ela cozinha de cá, ou de além mar...Pedia normalmente que me dissesse o que é que gostava de comer. Pedia que me explicasse que pratos gostava de fazer e porquê. Por outro lado, se desconfiava que iria ser desagradável com os seus camaradas, imediatamente o descartava. Não acredito, nem nunca acreditei em cozinhas geridas aos berros, com insultos ou violência.Não cultivo, nem nunca cultivei o medo.Há muitos anos que divulgo o nome dos membros da minha brigada e no Revolução, tinha o nome de todos, inscrito nos menus que eram entregues aos clientes. Todos os dias!
Chefe Nuno Diniz. Fotografia: Tiago Lopes |
Sempre atacou e bem, na minha opinião, o bando de oportunistas que, mesmo sem qualquer tipo de credibilidade, visitam restaurantes a custo zero para partilharem um conjunto de banalidades e apreciações sobre a refeição. Onde está a crítica gastronómica séria em Portugal?
Lembro-me de alguns "jornalistas" tentarem convencer-me que determinado prato, preparado por mim, não estava no ponto certo...Rapidamente explicava (ensinava) que quem define o ponto de cozedura dos meus pratos, sou eu e não estava nem queria estar à mercê da opinião de quem escrevia, pois como era óbvio (pelo menos para mim), conhecia e conheço a minha cozinha melhor do que ninguém, sabia e sei mais sobre ela do que qualquer outro ser vivo ou morto. Por vezes, ficavam incomodados, embora engolissem em seco e partissem para outra qualquer conversa (sorte de ter um feitio razoavelmente dominante). E apesar do que está escrito, adoro conversar com um jornalista conhecedor (como era por exemplo o David Lopes Ramos). Quanto aos jornalistas farinha Amparo, não finjo sequer, ter qualquer interesse em falar com quem é ignorante e que assim se quer manter.
Que memórias gostaria de ver inscritas no seu legado?
Apenas que fui um homem bom e íntegro, que tentou sempre ajudar quem merece ser ajudado.
Raul Brandão, no seu fabuloso Húmus escreve "O que eu tinha era medo. Medo da morte, medo da sombra". Tem medos? Crê na morte física como um fim absoluto?
Medo, só mesmo da decadência física e intelectual. Quanto à morte, sim!Não consigo conceber nada para lá da morte. Não acredito no sobrenatural, gosto muito pouco de religiões e portanto o que me interessa é a vida na sua plenitude.
E fui tão bafejado pela sorte, que essa plenitude foi sempre praticada!
Montalegre 2024. Fotografia: Tiago Lopes |
Obrigado, Chefe.
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