Rua da cidade do Porto |
O
conflito entre várias regiões que disputam a criação de determinada iguaria ou
prato, é comum. Esses pratos têm, por norma, um significado étnico ou
simbólico, e representam aspirações territoriais e matéria prima local, que
podem ser ou não exclusivas de uma só região.
Liora Gvion,
antropóloga e investigadora no Kibbutzim
College, em Tel Aviv estabelece
uma clara interconexão entre o discurso político e culinário, e ensina que os
alimentos tradicionais estão igualmente ligados ao acesso às terras, à sua
propriedade privada assim como à identidade nacional. Para
Michaela D.S, investigadora na
Universidade de Princeton, (que
também escreveu uma dissertação sobre a política e a moralidade ética em torno
do foie-gras, em França e nos Estados Unidos, cuja leitura recomendo) e o
nacionalismo usa alimentos para promover um senso de identidade nacional e
afeta a maneira como os membros da comunidade se desenvolvem. Apuram um sentido
de pertença a um determinado território, a uma determinada
comunidade.
O nacionalismo e as tensões
Há
cerca de 10 anos observou-se um escalar de tensões entre a Arménia, Azerbaijão
e Geórgia, “apenas” pela disputa estes pelo reconhecimento de certos pratos
como seus. Recentemente o Centro Culinário Nacional do Azerbaijão,
uma ONG, publicou relatórios acusando a Arménia de imitar o Azerbaijão: segundo
o CEO desta ONG “Desde 1989, a questão das pretensões Armênias para as
tradições culinárias do Azerbaijão foram discutidas no nível mais alto, por
especialistas e académicos. Todos pratos islâmicos pan-turcos, incluindo os do
Azerbaijão são reivindicados como
Arménios – “Estão a tentar provar que existe uma tradição culinária Arménia” (Al
Jazeera, 2014).
Outro caso é a famosa Borscht, uma sopa cujo ingrediente principal é a beterraba, tem sido alvo de discórdia quanto à origem entre a Ucrânia, Birlorrússia, Polónia e Russia. Em 2019, na conta do twitter (ou o X) do Ministério das Relações Exteriores da Federação Russa foi feita uma publicação indicando que esta iguaria era uma das mais famosas e amadas na Rússia e por isso, um símbolo da cozinha tradicional Russa. Gerou-se uma ampla indignação na Ucrânia e este episódio foi visto como uma apropriação cultural inapropriada. Durante a invasão russa, o porta-voz desse mesmo Ministério, Maria Zakharova, disse, em 2022, que o facto de os ucranianos “não quererem partilhar Borscht” é, per si, um exemplo de xenofobia, nazismo, extremismo em todas as formas” que tinha sido um, entre muitos outros, o motivo que levou à invasão. (PolandDaily24,2022).
Borsht |
Na Europa o movimento ganhou tracção a partir do final do Séc. XIX.
Em Espanha o movimento nacionalista ganha relevância a partir do Séc. XIX, é publicado um guia- chave “Guia del buen comer Espanol” que traz à luz do dia a grande diversidade culinária nas várias regiões deste país.
Em Portugal, António Maria de Oliveira Bello tem um lugar de destaque. Cria a Sociedade Portuguesa de Gastronomia e chama às suas ideias um grupo restrito de intelectuais para definirem estratégias. Editou em 1936 o Culinária Portuguesa que se configura como uma das principais e primeiras compilações de receituário organizado por regiões, em Portugal.
AMOB também foi sócio da Sociedade Propaganda de Portugal, fundada em 1906, cujo o objetivo passava por “promover, pela sua ação própria, pela intervenção junto dos poderes públicos e administrações locais, pela colaboração com este e com todas as forças vivas da nação e pelas relações internacionais que possa estabelecer no desenvolvimento intelectual, moral e material do país e, principalmente, esforçar-se por que ele seja visitado e amado por nacionais e estrangeiros” promovia também uma prática social muito elitista: o turismo.
Foi
aqui que o Estado Novo desempenhou um papel fundamental na construção de
uma genética culinária portuguesa através da marca Pousadas de Portugal,
criada em 1942. Este grupo tinha como premissa a de se servirem apenas
refeições que fossem fiéis aos territórios onde operavam.
A queda do Estado Novo em 1974, provocada pelo MFA,
não traz uma rutura deste objectivo, pelo contrário, refloresce um interesse
cada vez maior pelo universo popular de Portugal.
No pós-ditadura o investimento por parte do governo
nesta temática ainda é significativo ou até maior, proliferam as feiras
gastronómicas e as campanhas promocionais no país e até internacionalmente. A
par disto, todo o trabalho que tem sido feito no que à patrimonialização da
alimentação diz respeito, tem sido notável.
Foram criadas várias ferramentas para que a
catalogação e proteção não fossem apenas uma utopia. Temos o primeiro grande
avanço que é rotulagem e, posteriormente, a certificação DOP/IGP/ETG que é não
só uma valorização de determinado produto, indicando-o como “autêntico” como
também protege, na teoria, os seus produtores, em determinada região. Não
obstante os seus objetivos primordiais terem sido cumpridos, o despovoamento
rural (que seria um dos indicadores a contrariar por estas certificações)
continua a acentuar-se. No Alentejo, por exemplo, concentrava-se o maior número
de produtos DOP/IGP. Perdeu quase 3% da sua população. Conseguimos talvez
estancar, para já, a perda de certos produtos, saberes e sabores, o que já, por
si, merece nota positiva. Mas não é suficiente.
Temos apenas três únicos ETG (Especialidade
tradicional garantida) registados, são eles: arroz de sarrabulho à moda de
ponte de lima ETG, Bacalhau de cura tradicional portuguesa ETG, Sopa da pedra
de Almeirim ETG (dgadr.gov.pt). Consta-se que à data de escrita deste texto há
um programa de um partido político português interessado em aumentar o número
de ETG. Seria bom. A ver vamos.
Sopa de Almeirim |
A gastronomia dita regional ou local deve muito à intervenção política da UE e de cada governo dos seus estados membros através da implementação de certas medidas que visam proteger as suas técnicas, matérias-primas e consequentemente o seu consumo de forma informada e fundamentada.
Devemos ter presente que
as ideias de uma excelência ou mesmo da superioridade de uma cozinha própria não estão presentes apenas em alguns escritos, mas também podem encontrar-se no seio
da população ou de alguns segmentos desta.
Comer
em conjunto é um ato essencialmente humano.
Bibliografia:
MCGEE, Harold, Comida e cozinha,wmf Martins Fontes, 1984
OLLEBOMA, Culinária Portuguesa,Edição do Autor, 1936
ALMUDENA, Villegas, Ciencias da la gastronomia, Almuzara,2019
https://tradicional.dgadr.gov.pt/pt/
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