Decidi publicar por considerar uma visão pertinente,escrita por uma das figuras mais relevantes do panorama internacional da gastronomia.
Escrito por :René Redzepi
(chefe e proprietário do restaurante Noma Ver aqui)
Eu comecei a cozinhar no tempo em que era
comum ver os meus colegas a levarem um tabefe por cometerem pequenos erros na
cozinha e ver pratos a voarem em direção aos cozinheiros que estavam a fazer o
seu trabalho de modo muito lento. Não me era nada estranho ser chamado de
parvalhão inútil ou muito pior.. Era bastante comum o facto de eu querer pegar
numa panela e descobrir que alguém tinha metido a pega no fogo e voltado a
coloca-la no meu posto de trabalho só para me chatear.
Foto de : ver aqui |
Eu já vi chefs (da minha equipa e da dos
outros) a usar o bullying (ameaças, perseguição) e a humilhação para conseguir
obter resultados dos seus cozinheiros. Pensava para mim: Porque é que é
necessário? Eu nunca serei assim.
Mas depois tornei-me num Chef. Tinha o meu
próprio restaurante, onde investi o meu próprio dinheiro, com todas as
expectativas do mundo. Ao fim de alguns meses comecei a sentir algo a fazer
barulho dentro de mim. Eu consegui sentir isso a borbulhar, a borbulhar, a
borbulhar. Um dia saltou-me a tampa. As transgressões mais pequenas deixaram-me
cheio de raiva: Porque é que não escolheste o tomilho corretamente? Porque é
que cozinhaste demasiado o peixe? Qual é o teu problema? De repente, eu fiquei
maluco com o mise en place de alguém ou com algo simples que os cozinheiros
disseram de errado.
Era assim que eu tinha sido ensinado a
cozinhar e era a única maneira que eu sabia passar a mensagem. Não posso dizer
que que isto não funcionou durante um tempo. Noma teve mais sucesso do que eu
podia ter imaginado.
Simultaneamente, a profissão de cozinheiro passou
de um trabalho braçal para algo extraordinário. O nível de respeito que a
cozinha e os cozinheiros recebem é realmente surpreendente. O simples ato de
cozinhar leva as pessoas a mergulharem no nosso mundo e na nossa profissão:
eles querem transformar ingredientes, eles querem sentir o quão maravilhoso é
fazer uma omelete ou cozinhar um crème brûlée corretamente pela primeira vez.
O público espera mais de nós nos dias de
hoje. Surgem questões como: Será que ainda há espaço para pessoas como eu, que
começaram antes desta nova era? E o que vai acontecer aos exércitos franceses
onde treinamos, o regimento que ainda seguimos? Como podemos retificar os gritos,
os berros e o abuso físico que vemos nos nossos jovens cozinheiros? Como
desfazemos a cultura do machismo e da misoginia nas nossas cozinhas? Podemos
ser melhores?
Talvez a questão certa seja esta: Queremos
ser melhores?
Fui um agressor (bully) durante uma grande
parte da minha carreira. Já gritei e empurrei pessoas. Já fui um péssimo patrão
em certas alturas. Por algum motivo fico particularmente incomodado quando me
lembro de uma rapariga da Colômbia que trabalhou para nós e de quem eu
realmente gostava. Uma noite, tivemos alguns convidados importantes no
restaurante (jornalistas de algum sitio que agora não me consigo lembrar). Eu
dei à rapariga algumas diretrizes a seguir e ela respondeu “ Sim, chef”. Quando
chegou a altura de ela cumprir as funções dela, ela não fez o que lhe ordenei.
Isto acontece. As pessoas respondem “Sim”, mas tem milhares de coisas a
passarem na sua cabeça ao mesmo tempo e não prestam atenção.
Fiquei completamente maluco. Mandei-a sair
do serviço em que estava e gritei-lhe: O que raio é que estás a fazer?? Vai
para casa. Foi um mau momento. Tentei ligar-lhe para pedir desculpa, mas mesmo
depois de termos falado, eu consegui sentir que o clima ainda estava tenso
entre nós. No final da noite, enquanto estava a ir para casa com o Christian
Puglisi (era o sub chef nessa altura), ele virou-se para mim e disse: “Tenho
que te dizer Chef, passaste das marcas. Devo-te a ti ter que te dizer isto.”
Senti que tinha levado um murro no estomago
ao ouvir isto do meu sub chef, o meu aliado mais próximo, alguém que era meu
amigo e que seguia sempre as minhas deixas. Fui para casa e fiquei acordado
metade da noite a pensar neste episódio. Eu realmente gostaria de trabalhar com
esta cozinheira nos anos seguintes, mas com esta atitude eu iria afastá-la sem
querer. E num nível mais básico, eu senti-me horrível por ser tão cruel com uma
pessoa.
Esse momento foi parte de uma longa e
morosa revelação. Com o tempo eu apercebi-me que o meu comportamento estava a
magoar o meu staff que me acompanha sempre, pessoas que eu gosto e com quem
gosto de estar. Estava a influenciá-los a agir da mesma maneira que eu. Isto
não estava a ser saudável nem para mim, nem para a minha família, nem para a
minha mulher e nem para os meus filhos. Quem é que quer ir todos os dias para o
trabalho zangado? Eu certamente não quero isso, especialmente tendo três filhas
pequenas. Pensei em que tipo de mundo é que quero que elas cresçam. Não é uma
questão de género, é sobre melhorar a minha maneira de ser pelo bem das
crianças.
Tem sido uma evolução lenta, alguma parte
dela bem lenta. Há sempre algumas coisas que queres fazer mas que irá levar
bastante tempo a conseguir implementar. Talvez não haja dinheiro ou talvez
estejas a lutar pelo momento. Mas pela primeira vez na minha carreira, comecei
a criar um espirito mais humano e respeitador dentro do restaurante.
Não
estou a falar em cortar a disciplina ou a camaradagem na cozinha. A cozinha
precisa de disciplina, códigos de conduta, uma clara cadeia de comando. Os
cozinheiros precisam de sentir que fazem parte de um grupo que trabalha em
conjunto. Um restaurante precisa de organização e de controlo de qualidade.
Quando as pessoas se sentem mais confiantes, cozinham melhor. Fazem melhores
escolhas e tomam melhores decisões nos momentos críticos. Isso é o que é
cozinhar. Precisa de mais sal? Um bocadinho menos? Essa é a diferença entre o sucesso
e o fracasso.
A pressão estará sempre lá. Haverá sempre
competição e adrenalina. A maneira como se lida consigo próprio nesses momentos
é fundamental. Não se podem apagar aqueles momentos de maior azáfama, então o
que podemos fazer é encontrar as ferramentas necessárias para lidar melhor com
essas alturas.
Ainda continuo a reunir e a gritar com o
pessoal sempre que tenho que acordá-los da espécie de “trance” em que se
encontram. Mas há uma diferença entre destacar alguém ou dirigir-me à equipa
como um todo. É como se eu fosse o treinador num intervalo de um jogo de
futebol. Todos estão ao mesmo nível. Por isso, avalia-se a situação e segue-se
em frente.
Eu instruo os meus chefs que a única pessoa
que pode gritar sou eu. Não quero que mais ninguém se passe. Não quero que as
pessoas chamem nomes umas às outras. Já deixamos ir embora pessoas que tinham
muito talento mas que não tinham boas atitudes ou não eram pessoas
respeitadoras. Nós damos intencionalmente uma importância enorme a um ambiente
mais amigável para as mulheres, por isso não contamos anedotas obscenas e
pornográficas durante o dia todo. Não se trata de se perder o senso de humor.
Trata-se de ser mais inteligente ao lidar com os assuntos e deixar o humor
fluir.
As mudanças mais pequenas funcionaram no
nosso caso. Ouvir música na cozinha por exemplo. Ter refeições de staff, onde
nos podemos sentar para comermos juntos. Tivemos que alterar o horário de
abertura, das 18h para as 19h, para permitir uma pausa de uma hora para jantar
mas valeu a pena. Durante demasiado tempo comi as minhas refeições de pé, num
recipiente de plástico, ao lado do meu posto de trabalho e eu não quero que os
meus cozinheiros se acostumem a isso.
Talvez a mudança deva começar nas escolas.
O curriculum vitae dos chefs está fora de moda. Os alunos aparecem na escola,
é-lhes entregue um livro e eles tratam-no como uma bíblia. Já vi o livro do CIA
e lembro-me dele aqui em Copenhaga. Precisamos de novos livros e um
especialmente dedicado a como lidar com os convidados, empregados de mesa,
cozinheiros e produtores – um manual sobre a interação humana básica.
Nesta altura já estarão a pensar: “nada
disto importa René, é tudo muito fácil de dizer, mas as coisas são diferentes
no país onde estou. Se eu quero dar um murro ao copeiro e dizer-lhe que é um
imbecil é o que precisa de acontecer. Ninguém sabe o que funciona melhor no meu
estabelecimento.
E tem razão. Nós não temos muita pressão
para ter sucesso financeiro aqui em Copenhaga como acontece em Nova York ou
Londres. Tudo bem, vamos pensar nisto como a linha básica.
Talvez a maneira tradicional tenha
funcionado até agora. Mas a longo prazo esgota as pessoas. É por isso que as
pessoas hoje em dia se esforçam para conseguir encontrar cozinheiros. A nossa
indústria está cheia de gente jovem. À medida que vão envelhecendo, eles
desistem dos contratos porque só conseguem aguentar os abusos quando são novos
e fortes. Quantos cozinheiros da vossa equipa tem 32, 33, 34 anos de idade?
Talvez o chef executivo e o sub chef e mais nada. Estamos no caminho de
estragar as coisas neste meio se não começarmos a ser melhores no que fazemos.
Eu quero que as coisas mudem pelo bem desta
profissão. Quando tentamos mudar a cultura no Noma, fizemo-lo pelo bem da nossa
felicidade. Não imaginaria que isso também tornaria o nosso restaurante ainda
melhor. Mas foi a realidade. Isto funcionou para nós. Eu genuinamente vejo a
evolução e as melhorias no que toca à moral do staff, ao grau de satisfação dos
nossos clientes, à qualidade da nossa criatividade e execução.
Já vieram ter comigo membros do staff e
disseram: “Não sinto que o chef seja severo o suficiente. Gostava que voltasse
a ser como era há sete anos atrás.” Quando vejo alguém a trabalhar de maneira
desarrumada e desorganizada ou a trabalhar sem pensar, eu tenho que me
controlar às vezes para não recorrer às minhas anteriores táticas. É o cerne da
questão nos dias de hoje – a escolha à nossa frente: cozinhar deixou de ser da
Idade Média. As oportunidades para os cozinheiros serem líderes ativos em
movimentos ambientais e socais são reais e sem precedentes na nossa profissão.
Mas a única maneira de mantermos a promessa
do presente é confrontando o legado desagradável do passado e fazer um novo
caminho em conjunto para a frente.
Artigo retirado de :Lucky Peach ver aqui
Traduzido por:
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