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Entre o Trigo e o Sol: A Arte dos Cuscos de Vinhais- Isabel Alves| Tuga Gourmet

    

    Segundo Isabel Drummond Braga o cuscuz tem origens magrebinas, ainda que seja discutível, continua presente numa ampla zona “que se estende desde o Mediterrâneo ao Golfo da Guiné e do atlântico aos confins do deserto Líbio” (Braga, p.125). 

    Com a presença muçulmana na Península Ibérica, a partir do século VIII, foram introduzidas várias práticas e novos hábitos, alguns dos quais se mantiveram até aos dias de hoje.

   “(…) importa referir que em dois receituários do século XIII, o anónimo Kitab al tabikh fi-l-Maghrib wa-l-Andalus fi’ asr al-Muwahhidin, li-um’allif majhul, ou seja, o Livro de cozinha do Magrebe e do al-Andaluz na era almóada, por um autor desconhecido, datado do ano da hégira de 623, isto é, 1226, e copiado em 1604; e o Fu ālat al-Hiwān fi tayyibāt al-ta ‘ām wa-l-Alwān, isto é, Relevos nas mesas: sobre as delícias da comida e dos diferentes pratos, de Ibn Razīn al-Tuğibï (1260) incluíram receitas de cuscuz. Tenha-se presente que estes dois receituários copiaram e reproduziram outras obras anteriores como o livro sírio do século XIII, Kitab al-Wusla ila al-Habib, composto por 635 receitas e que se encontram algumas outras em textos médicos anteriores, marcados pela clássica teoria dos humores acrescentada com novos conhecimentos.” (Braga, p. 129)

    A entrada deste vocábulo na língua portuguesa terá sido tardia, surge, pela primeira vez conforme hoje a conhecemos na Crónica do Infante Santo, de frei João Álvares, redigida em meados do século XV:

A prizão fua era efta: quando andavam com o exercito no campo, jazião em tronco pelas pernas, e cadeas nas gargantas, e algemas nas mãos; e feu ordenado mantimento era huma oytava de fatinha, que comeffem como quizeffem; e às vezes lhes davão daquella vianda, a que chamão cufcuz, quando ficava da outra gente “ (Alvares, 1730, p. 249).

    Este produto tem na sua composição sêmola de trigo duro ou farinha de trigo, cuja sêmola ou farinha é posteriormente humidificada, enrolada, cozida e por fim seca. Temos também o cuscuz de cevada, chamado de amazighe marocain toumzine, e o badez, produzido com farinha de milho (Braga, p.126).

Já no século XVIII, no Diccionario da lingua portugueza, encontramos a seguinte designação:

"Cuscuz, f. m. maffa reduzida a grãofzinho , que fe come cofida ao vapòr da agua quente" (Bluteau, p. 357).

Terminada a introdução histórica, vamos conhecer uma produtora, das poucas existentes em Portugal no seu laborioso ofício:

Isabel Alves em produção. Fotografia: TL

Aldeia de Paçó

    São nove da manhã de um dia lá pelo meio de agosto e o termómetro já marca vinte e cinco graus — um calor decididamente transmontano. A estrada serpenteia entre carvalhos e castanheiros até que surge, ao fundo, a aldeia de Paçó, no concelho de Vinhais. As casas de granito outrora com vida embelezam o caminho até ao centro do lugarejo onde, junto ao fontanário, está Isabel Alves. Recebe-nos de braços abertos. Uma paragem no café central para beberricar um clássico Sumol de Ananás, pois é uma bebida que tem tanto de doce como de nostálgica.

    À entrada, a cozinha: um espaço quase sagrado, onde a transformação do trigo em cuscos acontece. O chão de pedra gasta, a lareira pequena, a masseira e a pequena jarra pintada manualmente de azul— tudo parece ter o peso do tempo. O ar está impregnado de um cheiro quente e seco, o do trigo moído.


Fotografia: TL


Mas afinal, são cuscos ou cuscuz? Como explica Afonso Belarmino:

“O cuscuz transmontano (que assume a designação comum de cuscos) pode ser preparado com farinha de trigo mole (farinha triga) ou sêmola de trigo duro, particularmente apreciado pela sua qualidade. (...) Na região de Bragança e Vinhais, os cuscos são preparados uma vez por ano, no outono, para todo o ano. (...) Serviam para substituir o arroz e as massas, suprindo as necessidades alimentares das populações mais modestas” (Belarmino, 1982, pp. 23–69).


Fotografia: TL


    A Isabel é herdeira dessa tradição. Na masseira, à esquerda da lareira, jaz um monte de farinha de trigo. Sobre ela, um alguidar com água morna temperada com sal. Ao lado, uma pequena vassoura de giestas mergulha num balde azul. Depois de salpicada com a água morna, a farinha fica engrumada à superfície e é nesse momento que o vaivém de braços se inicia.


Fotografia: TL

Cuscos antes da secagem. Fotografia: TL


Pergunto-lhe se alguma vez pensou em registar as quantidades. Ri-se, abana a cabeça e responde sem hesitar:
— “Isto dá muito trabalho! Apontar a receita? Isto não se mede, rapaz, isto sente-se!”

    Os grãos maiores ficam de um lado, os mais finos do outro. Observação e repetição. Os vários crivos, com orifícios de tamanhos diferentes determinam o destino de cada grão. 

    Depois passamos à cozedura a vapor, no cuscuzeiro. Actualmente é de alumínio, mas outrora foi de barro — como o descreve Bluteau no seu Diccionario da Lingua Portugueza (1712–1728):

“Cuscuzeiro, s.m. tigella de barro, que tem borda alta, e o fundo mais estreito que a boca; nella se coze o cuscuz; tem crivo no fundo.” (Bluteau, p. 357)


Cuscuzeiro por Isabel Alves


Secagem


    Por fim, os pequenos grãos são dispostos num tabuleiro de madeira com rede metálica, coberto por um pano branco de linho. Isabel espalha-os com gestos largos, como quem semeia. Ficam ali a secar durante alguns dias, ao ritmo do sol e da vontade da natureza. 


Chega ao fim mais um dia de trabalho. Fotografia: TL


Despedem-se de nós os bois, desconfiados, entre os arbustos. Guardam a aldeia, os homens e o futuro.

Até um dia!

 


 

 

 

 

Bibliografia

BLUTEAU, Rafael — Diccionario da lingua portugueza. Reformado e accrescentado por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. Tomo I (A–K).

BRAGA, Isabel Drumond — Cuscuz: um prato, muitas viagens, diversos sabores (séculos XVI–XXI). Arquivo Histórico da Madeira, Nova Série, n.º 6 (2024), p. 121–158. Direção Regional do Arquivo e Biblioteca da Madeira. Disponível em: https://ahm-abm.madeira.gov.pt.

BRANDAO (de Buarcos), João — Grandeza e abastança de Lisboa em 1552. Organização e notas de José da Felicidade Alves. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. (Colecção “Cidade de Lisboa”)

ALVARES, João - Chronica dos feytos, vida, e morte do Infante Santo Dom Fernando, que morreo em Fez / revista, e reformada agora de novo pelo Padre Fr. Jeronymo de Ramos.... - Terceyra impressaõ. - Lisboa Occidental: na Officina de Miguel Rodrigues: à custa de Joaõ Rodrigues mercador de livros ás portas de Santa Catharina,1730. - [20], 348 p.; 8º (16 cm) http://purl.pt/423
http://purl.pt/423/cover.get

AFONSO, Belarmino - O cozer do pão. Aspectos de uma actividade artesanal transmontana. Semana Cultural. Bragança, [s.n. - Composto e impresso da Escola Tipográfica - Bragança], 1982. In-4.º (24,5x17,5 cm) de 88 p. ; [1] f. desd. (bco) ; il. ; B


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