Cortes do Meio, Covilhã
Novembro, 2024
A padeira e o forno |
Um típico cão de loiça bem aperaltado e sossegado recebe-nos para uma chávena de café no estabelecimento da aldeia, o “Café do Terreiro” dois dedos de conversa depois com a Sra. Célia, descubro inusitadamente, um tipo de pão que desconhecia - a broa das cortes!
O cão da boa tradição lusa |
As ruas da madrugada |
A calçada irregular não permite distrações, ainda que por vezes se possa levantar o olhar e perceber que ainda há fumo em algumas chaminés. Um ou outro cão ladrando, desconfiados à nossa passagem. Não é uma padaria nem qualquer estabelecimento, mas sim o forno comunitário, um dos poucos existentes no país ainda em pleno funcionamento, este restaurado e bem, recentemente, pela junta de freguesia,
Noutros tempos estes fornos eram essenciais, pois a economização de lenha era uma preocupação das populações e como tal, era impraticável que cada casa pudesse ter o seu próprio forno. Segundo nos conta a Sra. Julieta, este forno, aqui, já tem mais de 200 anos.
Chegados ao forno, já com os pés dormentes do frio, bato levemente na porta para não assustar ninguém.
Parte exterior do forno, à chegada. |
Aceno e de dentro a Sra. Julieta, muito simpática acena e abre-nos a porta e pergunta o propósito de tal visita. Pergunto se posso aprender como se faz esta broa que eu desconhecia. Tal afirmação provoca algum espanto à padeira, que me responde: “Aprender agora? O quê? Não tenho nada para ensinar!” - como se quem faz isto há cerca de 40 anos nada soubesse!
Entrámos e ao lado esquerdo dormita o amistoso Sr. Aires de 89 anos, que segundo a Sra. Julieta com 82 anos, nos explica, é o especialista na arte de aquecer o forno, e também ajuda na colocação dos pães.
Sra. Julieta e o Sr. Aires |
A Sra. Julieta, faz três tipos de pães, o de centeio, o de trigo e a broa de cortes que consiste num pão com milho e pouco amassada. Em todos eles usa o crescente, que guarda no frigorífico de uma semana para a outra. Quando termina a massa, e ainda com as mãos enfarinhadas benze a massa com uma pequena oração que se quer secreta. Pois a cada artista a sua arte. O milho, assim como o trigo é diferente, já não é como antigamente, dizem.
A massa da broa das cortes |
O facto de não usar qualquer tipo de artificialidade permite um prolongamento de validade ao pão de cerca de oito dias.
Aqui existiam mais de cinquenta moinhos espalhados nas bermas do rio que se percebe farto de água ao fundo do Vale. Hoje estão quase todos em ruínas. À medida que a explicação decorre o Sr. Aires levanta-se amiúde do sofá para colocar mais lenha a arder. Alinha a madeira de uma certa forma muito específica dizendo: “Isto parece simples, mas é muito complexo!”
O Sr. Aires orgulhosamente a ensinar-me sobre a sua arte |
Depois de todos estes processos completos, os tempos de fermentação são diferentes entre as várias massas. São cinco da manhã e começam a "baquear" - termo que usam - as primeiras broas numa tigela de barro antiga. O Sr. Aires com muito afinco limpa a base do forno com a sua vassoura de giestas, e está pronto! A Sra. Julieta, à medida que tem as broas prontas, passa-as para a pá que o marido segura concentrado e seguem num ritmo perfeitamente coordenado, um alinhamento que se consegue com a repetição de várias décadas.
Pergunto sobre a continuidade do mister, e dizem-se abandonados à mercê do tempo, que talvez um dos netos se venha a interessar, mas não garantem, pois estuda “qualquer coisa de farmácia” na Universidade da Covilhã, e um dia terá que sair dali para procurar uma condição de vida melhor (explicam).
As broas já no forno |
Numa aldeia, já muito envelhecida, provavelmente o que vemos hoje aqui fotografado, não passará de uma visão enevoada no futuro.
Provei os pães dali a quatro horas, têm um leve sabor a fumo, pouco alveolados, muita história e quatro mãos de tenacidade e exemplo!
Centeio à esquerda, trigo à direita e broa das cortes ligeiramente mais abaixo |
Obrigado Sr. Aires e Sra. Julieta.
Relembro: foi um acaso da vida, nada foi a "convite " e o pão foi pago.