Sezelhe, 28 de abril de 2024
A memória é um lugar.
Por apreço, admiração e com gratidão aceitei o convite do meu amigo Ângelo Paupério para constituir um pequeno grupo de pessoas, desde de que aprumadamente alinhadas procurassem distinguir a comida do alimento.
Constituído o grupo, seguimos juntos para uma viagem de cerca de 150 quilómetros. Parámos no centro de Montalegre. O tradicional café, no tradicional estabelecimento, com o tradicional aroma a mofo. Sempre que vou para o interior é um prazer sentar-me nestes cafés e, como bom português costumeiro, ouço as conversas. Fala-se do que é importante: no gado, nas sementeiras e nas colheitas. Pensa-se no que é real.
Está frio e nublado. O sol espreita tímido. Compram-se as últimas cebolas, antes do almoço.
Dali a Sezelhe são mais uns minutos de carro que percorremos com a mesma lentidão dos nossos olhos deslumbrados por tamanha beleza destas paisagens transmontanas.
Chegados a Sezelhe, surge inesperadamente, congestionamento rodoviário: alguns bois descendo calmamente a calçada de paralelo, ruminando e olhando de soslaio como que dizendo que aqui o código da estrada é outro. A senhora que os acompanhava, magra e séria - os sorrisos da sua juventude talvez durmam nas rugas do seu rosto - abana a pequena vara, indicando-lhes um outro sentido. Acenou, agradecendo e continuou por entre o granito e o silêncio apenas interrompido pelos chocalhos ao pescoço dos seus animais.
A casa onde, talvez, vamos almoçar fica num alto: “Será esta?” - perguntei.
Uma pequena casa de forma retangular, base de pedra e uma pequena porta de vidro que dá para um belo jardim já colorido pela primavera que se inicia. Ouço a voz – inconfundível - de Bob Dylan do seu interior! Não me restou qualquer dúvida que tínhamos acertado na casa. Não tem campainha, tem um sistema muito antigo, em desuso, chamado pontualidade. O almoço estava marcado para as 12h e são 11:57h. Dali a 3 minutos somos recebidos pelo Chefe Nuno Diniz, que sai do seu interior sorridente. Desliga a música. Mostra-nos o seu templo.
O Chefe, para quem não o conhece (que eu acho difícil) estudou nas melhores escolas do mundo, cozinhou em 97 países, chefiou vários estabelecimentos, e foi durante muitos anos formador na Escola de Hotelaria de Lisboa. Influenciou várias gerações de profissionais em Portugal, inspirou outras tantas. Criador dos cozidos anuais, onde utiliza dezenas de enchidos diferentes de várias regiões do país, que acontecem desde 2004.
Escreveu vários livros. Publicará outro em breve. Tem uma característica muito estranha (ironia) e rara, que é a capacidade de valorizar e a apresentar as pessoas que trabalham com ele. Foi proprietário e chefe do restaurante “Revolução” onde pela primeira vez, no país, descreveu a origem de cada produto que utilizava no menu. Foi o mentor e júri do programa Top Chef na RTP. Conheceu quase todos os três estrelas Michelin do mundo. Tem uma vida cheia e feliz. Deixo um documentário na conclusão deste texto.
A fogueira está a arder e há alheiras espalhadas na banca, como que se de uma montra de joalharia se tratasse. Cada uma com uma pequena nota, indicando a proveniência. São 15 alheiras de 15 aldeias diferentes. Todas muito diferentes, visualmente. Entretanto, lá fora, as brasas já estão prontas e é para lá que somos conduzidos. Um terraço com uma vista incrível sobre as terras transmontanas. Uma violência magistral. Registam-se algumas fotografias e ouvem-se UAUS.
Às primeiras alheiras, que são dispostas com carinho sobre as grelhas, sou invadido pela impressionável ação da memória, fazendo-me regressar à minha tenra idade de 4 anos e à primeira memória que tenho, desde que tenho consciência da minha existência, que é a do meu pai a grelhar frango numa manhã quente de verão, num pequeno braseiro. O íntimo e fraterno pensamento de uma consciência individual potenciada pelo fumo da gordura das alheiras, arredondando-o telúrico e vívido.
Na mesa, os pratos com largas décadas estão alinhados, pertenceram à sua querida Mãe. Os talheres igualmente sincronizados com a forma da mesa denunciavam que este, além de ser um almoço com clientes que pagariam a sua conta, assumia um caracter mais intimista.
Iniciamos por um belo folar com compota de abóbora de Sezelhe. Seguiram-se as quinze alheiras das várias aldeias. Não me perguntem qual a melhor. Conversamos sobre o passado, o presente e o futuro. Ouvimos. Muito.
Terminamos com cannelés de Bordeaux. Estavam perfeitos. Depois, a convite do Chefe seguimos ladeira abaixo. Percorremos cerca de mil metros, lado a lado, com as árvores cravejadas de líquens, sinónimo da excelente qualidade do ar da região, combinação aperfeiçoada com o som aquático dos pequenos riachos que corriam para a ampla barragem do Alto Cávado mais ao fundo. Desaguámos por fim, inesperadamente, na “Palhota do Alto Cávado” um pequeno estabelecimento taciturno por onde se criva o quotidiano dos poucos resistentes, agora guardiões da memória da comunidade.
Regressamos à aldeia com as mesmas árvores e com C. Bukowski, L. Pacheco, H. Hélder. Medimos a distância entre a alta e a baixa cozinha. O território e a portugalidade, enfim, todos termos mutáveis dependendo da maturidade de quem os interpreta.
Pagamos o almoço. Despedimo-nos com muita vontade de regressar. Acho que percebem.
Deixo-vos um excerto de uma obra do Miguel Torga, que além de ser leitura do chefe é também minha e resume a alma desta região:
“A vida é feita de nadas;
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caiadas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma Mãe que faz a trança à filha.”
Miguel Torga
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