Cronica de Virgílio Nogueiro Gomes,reputado gastrónomo português.
Presença assídua em eventos,concursos nacionais
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Autor do livro Transmontanices ver aqui
Website: http://www.virgiliogomes.com/
Fotografia Adriana Freire
A sardinha faz parte do grupo de peixes teleósteos abdominai
e adquire o nome científico de “Sardina pilchardus”.
Não pensem que vou continuar com esta linguagem ou com as
definições técnicas deste maravilhoso peixe que nos identifica no Mundo. A
sardinha sempre foi associada a alimentação popular e recentemente assistimos à
sua utilização por grandes chefes e para grandes mesas, que dizer, alta
gastronomia ou cozinha de autor.
Ninguém como os Portugueses para se deliciarem com sardinhas
assadas e colocadas sobre fatia de pão de mistura. Claro que instintivamente a
tradição de comer sardinhas está associada à época em que o seu sabor é melhor.
Por isso a sardinha transforma-se em emblema culinário das festas populares de
Junho. E lá diz o ditado: “No S. João a sardinha pinga no pão”. Claro que a
sardinha é também o elemento culinário do Santo António. É de facto neste tempo
que a sardinha está gorda, a sua pele liberta-se com facilidade e a sua gordura
embebe o pão de forma gulosa.
Domingos Rodrigues (1680), autor do primeiro livro de
receitas em Portugal sugere os meses de Novembro e Dezembro, apesar de não dar
nenhuma receita. Lucas Rigaud (1780) nem sequer menciona as sardinhas. Já João
da Mata (1876) lhe concede honras de três receitas: Sardinhas à Mata, Sardinhas
em Pastelinhos à Portuguesa, e Sardinhas em Espiches.
Olleboma (1936), autor de Culinária Portuguesa recomendava
que a sardinha fosse consumida de Junho a Outubro pois eram os meses de melhor
sabor e menciona que “a sardinha é o peixe mais abundante em toda a costa de
Portugal… consome-se fresca, salgada e em conserva de azeite”. Como modos de
confecção apresenta várias receitas de fritas, grelhadas ou assadas na brasa,
recheadas e fritas com molho de tomate à moda de Setúbal.
Não vou continuar a relatar a presença da sardinha nos
clássicos de receituários de culinária portuguesa. Devo, no entanto, referir a
importância que a indústria conserveira teve durante o século XX.O sistema de
conserva dos alimentos após cozedura e isolamento do ar foi descoberto por um
cozinheiro francês de nome Appert e já em 1804. Mas é em Inglaterra que se
estabelece em 1810 a primeira indústria de conservas em folha-de-flandres, mas
o produto final era muito caro pelo seu manuseamento.
Curioso é encontrar já uma receita de sardinhas no famoso
livro, que eu traduzo directamente do francês para “As delícias da mesa e os
melhores tipos de comida”, de Ibn Razin Tujibi, escrito entre 1238 e 1266, e
publicado no tempo da dinastias Almohade e Mérinide, no domínio de Al Andalus e
do Maghreb. Isto porque a sardinha era considerada um peixe popular, ou menor.
Será fácil admitir que a sardinha já constava dos peixes que
os romanos consumiam e que seria um dos elementos que entrava no famoso garum.
Este seria uma pasta de peixe imaginada como sistema de conservação do peixe
após a chegada dos barcos, e de cujo fabrico temos informações de Setúbal e
Monte Gordo, condizentemente os locais onde se estabeleceram as primeiras
indústrias de conserva.
Durante a Idade Média haveria até 240 dias de jejum de carne
pelo que os frutos pesqueiros seriam a base da alimentação. A sardinha era primordial.
Consta mesmo que no primeiro “restaurante” instalado na Praça da Ribeira, o Mal
Cozinhado, se prestaria a fritar o peixe e servi-lo sobre fatias de pão.
A sardinha transformou-se num produto popular pelo seu
preço, e vulgarizou-se, como a melhor forma de a saborear, assada na brasa.
A sardinha durante o século XX teve picos de glória e de
abandono, deixando de ser prato de mesas finas ou abastadas. Para o interior
vinham em barricas com sal pois para as grandes tarefas agrícolas era
necessário contratar galegos que não abdicavam de comer peixe. Outras formas,
de conservação, levaram à criação de outro receituário como as empadas ou bolas
de sardinha.
A importância popular da sardinha foi, e é, tão grande que a
linguagem proverbial a adoptou em vários sentidos:
“Da garganta para baixo, tanto sabe a galinha como a
sardinha”
“Na tua casa não tens sardinha e na alheia pedes galinha”
“Nem sempre galinha, nem sempre sardinha”
“A mulher e a sardinha querem-se pequenina”
“A mulher e a sardinha quanto maior mais danadinha”
“Não há comida abaixo da sardinha, nem burro abaixo de
jumento”
“Se tens sardinha… não andes à cata de peru”
“Estar apertado como sardinha em lata”
“Comer sardinha e arrotar pescada”
“Tirar a sardinha com a mão do gato”
Para todas as ocasiões e para todos os sentidos.
A sardinha assada é, para mim, um elemento diferenciador da
alimentação portuguesa. Os países mais próximos que consomem sardinha, como a
Espanha, França ou Itália não o fazem como nós. E muito menos com o acto
convivial de comer sardinhas assadas na brasa, em conjunto à volta do assador.
E com a simplicidade de o fazer à mão e sobre uma fatia de pão. Claro que
estará sempre por perto uma boa salada com pimentos e bom vinho.
Não resisto a lembrar o único sítio que comi sardinhas
assadas e me fez lembrar, ou poder pensar que estava em Portugal. Em Essaouira,
Marrocos e antiga praça portuguesa de Mogador, junto à lota há uma espécie de
restaurantes que se limitam a ser umas mesas corridas e apenas temos que
escolher o peixe. Está incluído o pão, salada de tomate e refrigerantes (país
muçulmano e com uma mesquita na proximidade). Escolhi três variedades de peixe
e, a medo, apenas duas sardinhas. Chegado o peixe comecei pelas sardinhas e de
imediato pedi mais seis. Voltei lá mais vezes só para comer sardinhas.